segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Internação Compulsória é uma Violação de Direitos Humanos

Fábio Mesquita

Fábio Mesquita é médico, doutor em Saúde Pública e Chefe da Equipe de Controle de HIV/AIDS da Organização Mundial de Saúde no Vietnã, um país onde a epidemia de AIDS é totalmente associada ao uso de drogas. Fabio Coordenou os Programas de AIDS em Santos, São Vicente e São Paulo e Chefiou as Unidades de Prevenção e Direitos Humanos do Programa Nacional de AIDS do Ministérioda Saúde.
O Brasil precisa de um debate franco e aberto sobre políticas públicas sobre drogas.

Uma coisa é certa: o modelo que ai está não funciona. A comercialização e o consumo de drogas aumenta na sociedade que não tem nenhum controle sobre o fenômeno, totalmente controlado em nosso país pelo crime organizado. Uma das consequências é a violência urbana crecente.  Há diversos estudos demonstrando que a principal causa de morte associada à drogas é a violência da sua comercialização ilegal, a luta por controle de consumidores e de pedaços mais lucrativos do mercado, e não seu uso ou abuso.  Um segundo problema relevante é a quantidade de usuários e dependentes crescente, que variam conforme o mercado (definido pelo
paragrafo anterior) e o destaque que a imprensa da a eles. Há sem dúvida uma presença importante de crack em uma parcela mínima da população, mas que se mostra explícita e pública e que tem enorme cobertura da mídia. O uso de crack, segundo estudos da Universidade de São Paulo, leva à dependência 20% dos seus usuários e não todos como quer pretender quem alardeia uma epidemia que não existe.

A terceira consequência são as propostas milagrosas que aparecem para administrar as consequências de falta de uma política pública adequada. Vão desde a construção de hospitais para internar dependentes, até a elaboração de uma Lei por um respeitável Deputado Gaucho (Osmar Terra) de número 7663/2010 em tramitação no Congresso Nacional, que institui a internação compulsória de dependentes de crack. Antecipando-se a Lei, o Município do Rio de Janeiro do prefeito Eduardo Paes, esta internado compulsóriamente meninos e meninas de rua para "tratamento". O Município de São Paulo, do Prefeito Kasab, vai pela mesma linha e considera a sério semelhanmte despropositada medida.

A medida soa higienista e tem um tom pré Olímpico de manter as ruas "limpas e seguras", mas não pode ser considerada uma medida que ajudará a enfrentar à sério o problema das drogas.

A histeria causada pela preocupação relacionada ao uso de crack é desproporcional. O Relatório da Oficina de Drogas e Crime das Nações Unidas (UNODC) sobre Drogas de 2010 mostra que a droga que mais cresceu no mundo e no Brasil foram as metanfetaminas, outro estimulante mais fácil de produzir, comercializar e disseminar e dependendo do uso tão ou mais danoso que o crack.

A falta de uma Política Pública sobre Drogas adequada, pragmática, humanitária, pautada na realidade e nos direitos humanos é o problema de fundo do Brasil. Há uma inaceitável omissão dos Governos de tratar desta questão de maneira profunda e séria.

Neste ponto a voz mais sóbria do país neste momento histórico tem sido a do ex-presidente Fernando Henrique.  É verdade que ser ex-presidente o coloca em uma situação mais tranquila para lidar com assunto tão relevante quanto espinhoso, mas como Nelson Mandela e Bill Clinton que se omitiram seriamente na luta
contra a AIDS em seus países em seus mandatos presidenciais, passarão para a história como algumas das pessoas que mais se destacaram na luta contra a AIDS em todo mundo. Assim tem sido visto fora do Brasil o ex-presidente FHC em relação à drogas.

A luta que se trava abertamente é entre um movimento apoiado por psiquiatras conservadores e denominado Pauta Brasil de Combate as Drogas, e o setor avançado que representa a reforma psiquiátrica, as Conferências Nacionais de Saúde Mental, o Movimento de Redução de Danos e o Anti-proibicionista com posições mais contextualizadas.

Ao que tudo indica, a Presidenta Dilma parece desconhecer o papel histórico de Santos que na época dirigido por baluartes de seu partido como a ex-Prefeita Telma de Souza e o ex-Prefeito David Capistrano Filho que em seus mandatos – dos quais tive a honra de participar – demonstraram que a violência dos manicomios e tratamentos enclausurados, poderiam e deveriam ser substituídos por modelos baseados em tratamento ambulatorial, voluntário, publico e gratuito, de base comunitária com intervenções psicossociais e sob o controle do setor de saúde em seu amplo aspecto. Foi assim que interditamos o Hospital Anchieta e criamos na época os NAPS que viraram modelo Nacional e hoje são chamados CAPS.

Não existe uma solução única quando se fala de tratamento de dependência de estimulantes – cocaína, metanfetaminas e outros – mas o país como um todo com os Centros de Apoio Psicossocial de Álcool e Drogas (os CAPS AD) pautados pela estratégia de redução de danos, vinha se tornando um modelo público de recuperação da dependência e reinserção social copiado e celebrado por todo o mundo.

O tratamento compulsório da dependência química não funciona. A Organização Mundial da Saúde (OMS), organização para qual eu trabalho, preconiza que o tratamento compulsório só pode ser empregado em situações excepcionais, e por tempo muito limitado, sempre sob decisão judicial, e não do psiquiatra ou da Assistente Social como tem sido o caso, e jamais em massa! Aliás, como vem sendo conduzido no Rio de Janeiro não difere muito de outros modelos espalhados pela Ásia, como aqui no Vietnam ou na China, onde o
tratamento compulsório tem sido combatido com veemência por nós das Nações Unidas e por entidades da sociedade civil como o Human Rights Watch, pela violação de direitos humanos fundamentais.  A medida violenta, ineficaz e descabida precisa ser combatida, por todos os setores da sociedade, pois o Brasil não pode aceitar "soluções" para problemas sociais que fujam dos parâmetros do direito e da cidadania que conquistamos a tão duras penas.

Segue abaixo o texto do Manifesto de Várias Entidades do Rio de Janeiro, em evento realizado na sede da OAB do Rio de Janeiro. O manifesto é também assinado pela OAB do Rio de Janeiro.  Manifesto em defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes da cidade do Rio de Janeiro

As operações da Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, de recolhimento das crianças e adolescentes foram intensificadas com a regulamentação de um Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social ao final de maio do presente ano (Resolução SMAS nº 20 de 27/5/2011). Tais medidas surpreenderam a tantos que há muito tempo se dedicam a refletir, formular e executar ações de promoção e defesa dos direitos de nossas crianças e de implementação de políticas públicas sustentadas no marco legal da saúde/saúde mental, da assistência social e da política para os direitos humanos da infância e adolescência, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, com base em toda uma legislação construída e consolidada a partir dos anos 1990, de forma participativa e democrática.

Além disso, a Resolução SMAS nº 20 desconsidera previsões legais e regulamentares, tais como:

1. Lei 10.216 (04/06/2001), que regulamenta a política de  saúde mental e prevê, em seu artigo 9º, que "A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à  salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários"

2. Provimentos nº 4 (26/04/2010) e nº 9 (17/06/2010), do Conselho Nacional de Justiça, que prevêem, respectivamente, que a atuação do Poder Judiciário deve se limitar ao encaminhamento do usuário de drogas à rede de tratamento, não cabendo determinar tipo de tratamento, duração nem condicionar o fim do processo criminal à constatação de cura ou recuperação e que o atendimento a crianças e adolescentes que usam drogas será multidisciplinar e observará a metodologia de trabalho prevista por aquele Conselho Nacional.

Na contramão, a SMAS alardeia que no período de 31 de março a 15 de julho procedeu a 19 operações de retirada de moradores de rua (crianças e adultos) em áreas da cidade, acompanhada das polícias civil e militar. Do total de 1194 pessoas recolhidas, 230 são crianças e adolescentes; no caso destes, se supõe de pronto que possam ser autores de ato infracional – e, por isso, são levados à Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente ou a batalhão policial. Com tal procedimento, a Secretaria se distancia de suas funções sócio-assistenciais e atua como uma agência de repressão, prestando-se à segregação e aumentando a apartação social que deveria reduzir, desconsiderando inclusive que o enfrentamento da fome é determinante no combate ao uso do crack, em especial da população de rua.

Assistimos, hoje, na cidade do Rio, a incorporação da metodologia do choque de ordem pela Secretaria Municipal de Assistência Social, que privilegia uma ação de defesa da "ordem pública", de natureza higienista travestida de assistência social. Com tudo isto, temos a lamentar o apoio e a parceria de autoridades e órgãos
ligados à Justiça a tal medida, quando deveriam atuar na garantia de direitos e cobrar dos gestores públicos a efetivação de políticas públicas e serviços intersetoriais de qualidade.

Não concordamos com uma ação que elege a internação compulsória como tratamento para o uso prejudicial de drogas para os pertencentes das classes populares. Também não estamos de acordo que aqueles que dela fazem uso sejam revitimizados, criminalizados e associados automaticamente a delitos, ao invés de receberem do Estado atenção integral, intersetorial e de qualidade, que permitam desenvolver o conjunto de potencialidades próprias de cada ser social. Recusamo-nos a culpabilizar as famílias como fazem algumas vozes, entendendo que elas precisam receber proteção e atenção integral, conforme preconizado na maioria das políticas públicas. Espanta-nos a iniciativa da Secretaria Municipal de Assistência Social de trazer exclusivamente para o seu âmbito a atenção a estas crianças e adolescentes, observando (ainda no campo estrito da assistência social) que a rede de atendimento municipal não se encontra adequada à tipificação nacional dos serviços sócio-assistenciais, conforme prevê as normas legais referentes à Política Nacional de Assistência Social e ao Sistema Único de Assistência Social (PNAS/SUAS). Reconhecemos que a política de saúde e, nela, a de saúde mental deve ter intervenção prevalente na situação, dispondo de saberes e práticas que podem viabilizar uma adequada assistência a este público, adotando a perspectiva da redução de danos e utilizando-se das bem sucedidas experiências com os consultórios de rua.

A expansão do uso do crack e de outras drogas baratas disponibilizadas para as classes empobrecidas é um fato complexo, que requer ações diferentes do recolhimento compulsório de pessoas.  Exige abordagem processual e o estabelecimento de relações de confiança e adesão que, como se sabe, não provocam efeito
imediato e midiático. Requer ainda, uma ação multidisciplinar e intersetorial entre a saúde, a assistência social, a educação e a cultura, o esporte e o lazer, e demais políticas.

Por outro lado, o procedimento em curso não foi apresentado à discussão nos conselhos municipais de assistência social e de defesa dos direitos da criança e do adolescente (CMAS e CMDCA), instâncias formais de controle social e de formulação de políticas. Ignorou a "Política municipal de atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua", objeto da Deliberação 763 de 2009 do CMDCA, órgão colegiado vinculado à própria SMAS. Esta Política foi discutida amplamente por Grupo de Trabalho paritário composto por diferentes secretarias de governo, organizações da sociedade civil e representantes do sistema de garantia de direitos humanos (cfr.Resolução 113 – Conanda) e deixou de ser implementada por seguidas gestões.

Na verdade, a gestão pública municipal vem negligenciando dos seus deveres constitucionais para com as nossas crianças e adolescentes. Faltam investimentos na rede de saúde mental e de atenção a quem usa e abusa drogas lícitas e ilícitas (álcool, tabaco, maconha, cocaína, "crack" etc.), em acordo com a lei 11.343/2006, nos conselhos tutelares e em outras medidas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, na rede própria de assistência integral e de acolhimento a crianças e adolescentes em situação de rua e a suas famílias, na rede pública de educação e na implementação do "Plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas", conforme estabelecido no Decreto presidencial 7179 de maio de 2010.

Assim sendo, observando a magnitude do contexto de vulnerabilidade e de violação de direitos de muitas crianças e adolescentes em nossa cidade, os presentes neste Ato Público e signatários deste Manifesto, reclamam do Poder Público, nas pessoas do Sr. Prefeito e secretários de Governo:

- implementação imediata da "Política municipal de atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua", conforme deliberação 763 AS/CMDCA de 2009;

- ampliação e investimento nas estratégias de redução de danos, nos consultórios de rua, na rede de saúde mental infanto-juvenil: Centros de Atenção Psicossocial infantil (CAPSi), Centros de Atenção Psicossocial na área de álcool e drogas (CAPS/ad) e nos leitos em hospitais gerais;

- ampliação do número de conselhos tutelares, com investimentos especialmente na capacitação e treinamento dos conselheiros, na melhoria das condições materiais de trabalho e na qualificação dos serviços prestados;

- implementação do Plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas (Decreto 7179/2010), implantando Casas de Acolhimento Transitório (CAT) que ofereçam ambiente de proteção social e de cuidado integral em saúde, em articulação com os CAPS/ad;

- promover o imediato reordenamento da rede de atendimento a crianças e adolescentes, em conformidade com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais- PNAS/SUAS;

- cessar imediatamente a abordagem a crianças e adolescentes nos moldes aplicados hoje, face à Resolução SMAS nº 20, deixando de proceder a internação compulsória e o encaminhamento de adolescentes, julgados prematuramente em delito, à DPCA.

Rio de Janeiro, 27 de Julho de 2011

2 comentários:

  1. Com qual base diz q os comad´s não são atuantes?

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  2. Não disse que os comads não são atuantes. Disse que a maioria é.

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