quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A SAÚDE TIRANA



No dia 24 de julho li na Folha de São Paulo uma entrevista com o endocrinologista americano, Robert Lustig, sobre o consumo de açúcar. Ele vem realizando interessantes pesquisas sobre esta substância e seu papel no organismo há algum tempo. Ele afirma que o açúcar causa dependência e que alguns produtos com essa substância, como os refrigerantes, deveriam ter sua venda e usos controlados por lei. Ele cita vários danos que o açúcar pode causar ao organismo como hipertensão, ganho de peso e diabetes. Há muito se sabe que o consumo excessivo de açúcar causa danos ao organismo. O acréscimo de açúcar aos alimentos, todos sabemos, não traz nenhuma vantagem para a saúde. O mesmo pode-se dizer do sal, de gordura saturada, etc.

No entanto, que mais chama a atenção na entrevista do Dr Lustig, além da ênfase de que o açúcar causa dependência química, foi a sua recomendação da proibição da venda de alguns produtos que contenham açúcar. Tal proposição não surpreende, é verdade, vinda de um cientista americano. Isto me fez pensar o quanto alguns argumentos de defesa intransigente de certo ideal de saúde têm proliferado no Brasil, sobretudo no que diz respeito ao consumo de substâncias potencialmente nocivas. Tais argumentos são, em grande parte, embasados em pesquisas americanas como a do Dr Lustig.

A despeito do avanço que a democracia e os direitos civis tiveram em nosso país nos últimos tempos, ainda se aposta muito em medidas coercitivas como forma de evitar agravos à saúde. Especialistas dessa área se imiscuem nos meios judiciários e legislativos, criando e respaldando ações e leis que visam proteger a saúde do cidadão e a saúde coletiva com proibições e limitações diversas. As intenções parecem ser sempre boas, mas de boas intenções, como se diz, tem lugar que está cheio.

Vivemos um momento em que ao mesmo tempo em que alguns setores da sociedade propõem um novo olhar para questões como homossexualismo, drogas e aborto, por exemplo, afloram também tendências conservadoras, algumas extremistas, em diferentes segmentos, inclusive no campo da saúde. Surgem propostas de internações compulsórias por atacado; fomentação, pelo poder público, de instituições fechadas, de cunho moralista e intolerante. Nesse contexto, creio que vale à pena refletirmos um pouco sobre o rumo que queremos dar às políticas de saúde pública em nosso país.

Considerando que a saúde é um bem, e que o estado deve garantir o direito do cidadão a este bem, como está previsto na Constituição, devemos também considerar que não se trata de um bem absoluto, mas antes, tem um valor relativo, ou seja, trata-se de um bem e não de O Bem. A oposição entre saudável e não saudável não é a oposição entre o Bem e o Mal, como alguns “especialistas” pretendem demonstrar. Proponho que reflitamos até que ponto deve se colocar a saúde acima de tudo, como algumas posições parecem defender. Cabem, neste contexto, perguntas fundamentais: ao cidadão devem ser proibidos ações e hábitos que prejudiquem a sua própria saúde? Mudando a pergunta, os indivíduos devem ser obrigados, pelos mecanismos de controle do Estado, a produzir e promover a própria saúde? Por outro lado, ao ser coagido por leis a abandonar hábitos considerados nocivos a si, mas que lhe são caros, as pessoas ficariam mais “saudáveis”?

De fato, no nosso dia a dia, somos muito poucos os que preservam a saúde tal qual mandam os figurinos: comemos doces, alimentos gordurosos e salgados, abusamos de drogas lícitas e/ ou ilícitas, com ou sem receitas, trabalhamos demais, exercitamos de menos, envolvemos em paixões perigosas, colocamos piercings, praticamos esportes radicais, fazemos jejuns ou greve de fome, morremos por ideais políticos ou religiosos, arriscamos a vida e a saúde por uma série de motivos, nobres ou banais.

Como se percebe, a saúde, ou pelo menos certo ideal de saúde, é sempre sacrificado pelo prazer, pelo amor, pelo trabalho, pela liberdade, pela religião ou por outra coisa qualquer. Parece, ao observar os diversos comportamentos, que o ser humano se coloca espontaneamente em risco, que a saúde não é apenas preservada, mas assim como outros bens, quando se usa, se gasta. Diante disso, devemos ser muito zelosos com as legislações, ações e políticas que, com o argumento de proteger a saúde dos cidadãos, limitam seus hábitos, controlam suas atitudes e em muitos casos coagem e violentam.

A Organização Mundial de Saúde define saúde como um bem estar biopsicossocial. Desconfio que ninguém viva permanentemente neste estado, mesmo que o possamos vivenciar, ainda que transitoriamente. No entanto, enquanto um parâmetro ideal, ao qual devemos almejar, é definição plenamente satisfatória. Por outro lado, o mal estar característico da existência humana está sempre presente e não o conseguiremos evitar. Muitos dos hábitos que prejudicam o organismo são arranjos que as pessoas construíram ao longo da vida para lidar com o mal estar. Mas pode acontecer de o mal estar físico ser produzido na busca do bem estar psíquico, e vice versa. É possível, no entanto, que as pessoas consigam desenvolver hábitos pouco danosos ao organismo biológico que lhe permitam lidar com o inerente mal estar. Porém, as prescrições de modelos “saudáveis” de comportamento são, a meu ver, sempre perigosas. Sobretudo quando elas se tornam hegemônicas e universais.

Ao ouvir a opinião de certos estudiosos e especialistas do campo da saúde sinto arrepios. São tiranos da saúde que pensam ter a receita para o bem estar geral e fazem prescrições por atacado. Prefiguram uma sociedade onde nossa conduta mais íntima e particular tenha que ter, em nome de uma idéia de saúde, uma legislação própria; onde nossos pequenos e prazerosos danos diários tenham que ter permissão especial; onde comer doces, transar sem camisinha ou deixar de escovar os dentes, ações que sabidamente trazem riscos ou danos, sejam proibidas e/ou controladas por leis, com câmeras ocultas e delatores invisíveis.

Exageros à parte, proibição do uso de certas substâncias, ou de outros hábitos nocivos ao organismo, para todos e em todos os contextos, deve ser pensada e repensada. O tratamento compulsório e/ ou involuntário, qualquer que seja ele, só pode ser admitido com muito critério e em casos muito particulares. Num ambiente democrático, o controle do estado sobre as decisões que o indivíduo toma em relação a sua própria saúde deveriam ser as menores possíveis.

Na assistência à saúde, ou se adota uma postura moralista, eivada de preconceitos, maniqueísta e fundamentalista, ou se adota uma postura ética, necessariamente perspectivista, capaz de modular os pontos de vista e acolher as diferenças. Quanto a prevenção, ou se opta por modelos coercitivos e excludentes ou se adotam modelos educacionais, tolerantes e inclusivos. Educação e coerção não andam juntas, aliás, são frequentemente inconciliáveis.

Quanto a mim, humano, cidadão e sujeito de direitos públicos e privados, que tanto prezo a minha saúde, quero ter o direito de dispor e usufruir desse bem como melhor me convier.

Um comentário:

  1. Oi Arnor, adorei seu texto. Como sempre você muito sensato e objetivo. Parabéns!!!!
    Abraços

    Patrícia de Castro

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