quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A SOCIEDADE ADICTA


Oriol Romaní

Falar de adição, sobretudo nestes ambientes relacionado com drogas pode ser confuso se não esclarecermos a que nos referimos. Assim iniciarei estas breves reflexões tentando esclarecer, o que me permitirá passar ao núcleo da questão.

A palavra adicto, tanto no campo das drogas como por extensão na sociedade em geral, tem servido durante um período recente para marcar certos indivíduos como diferentes dos demais (estigmatização), sem bases muito precisas para aplicá-la.

Entendia-se "a droga" como o obscuro objeto do manejo de certos delinqüentes e, portanto, se tratava repressivamente tanto na abordagem de assistência como o consumo (modelo penal); ou podia também entender como aquelas substâncias que, somente com um contato, levam a alienação e doença às vitimas que a elas se aproximam (modelo médico).

Desde estas perspectivas se tem etiquetado com o rótulo de adicto a muitas e diversas pessoas cujo único denominador comum tem sido o de ter contato com umas substâncias químicas que estão submetidas a fiscalização penal e administrativa pelos organismos internacionais e os estados nacionais, e às que se tem atribuído uns significados culturais muito fortes ("sobrecarga" simbólica).

Enfim, a velha história de que um alcoólico podia não ser mais "um pobre bêbado" (ou "um senhor que tem problemas com o álcool", dependente de seu status social) enquanto que certos jovens, com determinada aparência, que circulavam por certos ambientes, e aos que se supunha que consumiam "certas" substâncias, se Ihes chamava drogadictos -com todas as conseqüências que historicamente ele comporta.

Ainda que esta não seja uma situação de todo superada, está claro que estamos em outra fase da história. Agora podemos admitir que o uso se dá, em praticamente todas as sociedades do mundo, que podem ser muito diversos entre elas, que cumprem muitas funções, e que só quando adquirem certas características e um nível de problemas pessoais de todo tipo (psicológicos, físicos, sociais) Ihes podemos chamar de drogodependentes e conseqüentemente tratar-Ihes, independentemente do estatuto legal que tenham as referidas drogas. Se nos meios profissionais, hoje em dia, é politicamente correto falar de drogodependentes e não de drogadictos é pelo abuso que se fez do termo e a carga valorativa (negativa, alarmista) que é dada ao dito uso.

Porém, creio que com isso não se solucionou ainda um certo desenfoque à questão, pelo menos de maneira generalizada, como é o fato que do conjunto de dependências que configuram a vida de nossas sociedades atuais, desde a forma dominante de ver o mundo, desde as instituições, se tem enfatizado os problemas que umas podem acarretar, enquanto que outras não se reconhecem como tal. E isto é porque não se quer -ou pode­ prestar atenção ao caráter básico das sociedades humanas existentes até agora.

Em decorrência, o homem é um ser dependente por natureza, e quando digo por natureza não é uma maneira de falar, e sim eu me refiro, de forma precisa, à sua constituição biológica: é um animal com uma programação genética aberta, com uma orientação muito geral de seus instintos, que é modelado de uma maneira decisiva por sua cultura, que incorporará através da interação social e o aprendizado, graças, principalmente ao longo do período de crescimento que se caracteriza.

Esta dependência do meio ambiente sócio- cultural é uma das raízes, um dos elementos básicos da vida humana. Através deste pressuposto, a tradição cultural de muitas sociedades humanas tem se orientado para o que parece mais sensato, quer dizer traçar como administrar de maneira mais positiva possível para o indivíduo e para a sociedade as pequenas -o não tão pequenas­ dependências que configuram sua vida cotidiana como seres humanos, mais que lutar frontalmente contra elas.

Dependências "com apelido" tem muitas: no jogo, no trabalho, à comida o ao jejum, a ordem, ao sexo, às drogas, etc. Dizem os psicanalistas que se passa da dependência à adição quando alguém é possuído totalmente pelo "desejo" e é incapaz de racionaliza-lo, de expressa -10. Partindo desta afirmação, podemos pensar que em nossas sociedades contemporâneas um certo nível de adição é amplamente funcional se levarmos em conta o papel central que o consumo joga nelas, tanto do ponto de vista econômico, como do das relações sociais, da construção de uma identidade, etc. Adição que supunha entrega irreflexível ao automatismo do consumo, para que a maquina siga funcionando sem maiores problemas, o qual constituiria no ideal das grandes corporações que hoje decidem sobre nossas vidas e propriedades. E que seria distinta do reconhecimento crítico de nossas dependências, que possibilitaria uma certa elaboração de "estratégias de vida" com orientações culturais às que me referi no final do ponto anterior.

Porém em nossas sociedades urbanas-industriais tem coincidido pelo menos duas questões que se levou a colocar contraditoriamente o tema de dependências e adições: por um lado, o "otimismo científico decimonónico" a partir do que a ciência positiva, mais além de seu papel como tal, tem jogado o papel da ideologia hegemônica da modernidade. Isto permitiu formular a utopia de que, a diferença dos incultos população rural e não, digamos, dos selvagens primitivos que, para assegurar a reprodução de suas sociedades(de seus bosques, seus campos, seus filhos, seus deuses, etc.)dependiam dos estranhos rituais mágicos que foram perdidos, com as sociedades modernas entravamos no reino da liberdade, em que iríamos poder enfrentarmos cientificamente a fome, o sofrimento, a morte, a incerteza, etc.

Ao entrar no sec. XXI vemos os ganhos e potencialidades que conseguiu a técnica, derivada desta ciência moderna, porém também dos novos problemas, inclusive meramente instrumentais (como por exemplo, assegurar a continuidade da energia necessária para viver) e sua incapacidade para resolver aqueles grandes problemas humanos: todo ele pela organização social através da que se desenvolveu aquela ciência e técnica na que, hoje, pesa mais na tentativa de guardar e ampliar os privilégios de alguns, que não garante a reprodução da sociedade em seu conjunto.

A Segunda questão a que me referi no inicio do ponto anterior está relacionada com este último. Tem sido potencializado ( o foi esquecido, alguns casos) aquelas adições que eram mais funcionais a esta organização social, enquanto que outras são etiquetados com tais, e que, que foi construído como um problema social que, em conseqüência, tem que resolver urgentemente.

O fato de que durante o século XX foi construído um sistema de controle social conhecido como "problema social da droga", o que foi feito sobre umas drogas e não de outras, e que este tenha sido precisamente o problema, e não de outro, é, de certo ponto, conjuntural.

Porém o "problema da droga "apresenta algumas notáveis contradições, como que instituições sociais apresentam a "guerra contra a droga" somente para alguma delas e para outras, que na realidade, esta guerra acaba afetando a certos produtores e consumidores, porém não a muitos outros: que foi criado, não só um conjunto de normas gerais, mas sim de regras específicas que é impossível de cumprir; e que pretende colocar freio ao consumo na área restrita de vida dos indivíduos, enquanto que, por outro lado , e também institucionalmente, se está pressionando aos mesmos para incrementar distintos consumos.

Como disse antes, esta situação está começando a mudar, porém, neste momento ainda define em grande parte o marco no que nos movemos. Não se quer reconhecer o alto nível de intoxicação que requer a sociedade adicta para seguir funcionando, pois ele entra em contradição com alguns dos valores básicos proclamados, entre eles os que dizem basear a "guerra à droga". Ainda que isto tende a complicar mais as coisas não é impedimento pra que se tente detectar os problemas reais que podem ter algumas pessoas, seja com as drogas, seja com outras adições, e colocar em marcha mecanismos de ajuda. Porém, para isto é necessário escutar as pessoas (para responder a problemas reais, sentidos e não inventá-los ou responder a certos modelos em voga (como o penal ou o biomédico) não são precisamente os mais adequados.

Para analisar e entender as adições, me parece mais útil um enfoque mais compreensivo. Admitimos que alguns indivíduos, em determinadas condições sofrem dependências que definiremos como patológicas. E se não falamos de adições em geral, e sim de drogodependências, é claro que, a partir de nossos atuais conhecimentos, sabemos que certos fármacos podem precipitar, coadjuvar, fixar esse processo patológico de dependência.

Portanto, creio que é mais pertinente abordar a dependência em relação ao que chamamos "estilo de vida" determinado, sobretudo para assinalar que não se trata única e especialmente dos efeitos farmacológicos de uma substância sobre um indivíduo, e sim que estamos diante de um mecanismo sócio- cultural no que influi processos de identificação, de construção do eu, estratégias de interação, negociação de papéis, enfim, todo um emaranhado de relações sociais e expectativas culturais que contribuem para a construção do sujeito e através das que este orienta sua existência, ainda que, neste caso, seja um meio de áreas substanciais de conflito. Situações nas que o farmacológico tem seu papel, porém que não pode contemplar como um fator causal das mesmas, tal como se pretendia fazer de maneira simplista desde o modelo biomédico, e sim é articulado aos demais níveis que configuram esta fenômeno e que etiquetamos assim: adição.

1 Texto publicado na revista EI Especialista, Barcelona 1999(15):15-17. Traduzido por Regina P. Medeiros em fevereiro de 2001.

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