terça-feira, 31 de janeiro de 2012

NOTAS SOBRE A CRACOLÂNDIA



 



Contardo Calligaris





A escolha de se drogar é uma doença? Consideramos doente quem não se autorregula
como nós?



Alguns leitores pediram que eu me posicionasse sobre a operação policial que tenta
acabar com a cracolândia de São Paulo.



Aqui vão três posicionamentos. 1) Sou contra violência e abusos repressivos (em
tese, o governo também é). 2) Com ou sem internações não voluntárias, com ou sem a
boa vontade de ONGs e igrejas, só uma ínfima parte dos drogados desistirá do crack
e da errância pelas ruas da cidade. 3) E enfim, em tese, sou a favor do projeto de
acabar com a cracolândia, mas não me orgulho disso, por duas razões: a primeira é
que tenho carinho pelas sarjetas urbanas e ainda sinto falta da Times Square de
Nova York nos anos 1970; a segunda pede uma explicação mais longa.



A operação cracolândia e o debate que a acompanha na imprensa ilustram as
dificuldades do poder na modernidade. Num dos seus melhores seminários (o de
1975, "Os Anormais", Martins Fontes), Foucault mostra que esse poder oscila entre
dois modelos: o da lepra e o da peste. Os diferentes e infratores podem ser
retirados da circulação, fechados na prisão, na colônia agrícola, no antigo
asilo.



Esse é o modelo adotado para a lepra; ele segrega no lazareto. Mas, às vezes, os
diferentes e infratores, muito numerosos, espalham-se pelo tecido social de forma
que sua segregação seria improvável. É o que acontecia no caso da peste.



Os contaminados, então, não eram fechados em lazaretos afastados, mas a cidade era
dividida em quadras, que eram vigiadas por, digamos, agentes sanitários: os doentes
eram proibidos de deixar seu domicílio, e o governo administrava a vida (e a morte)
deles dentro de suas próprias casas.



O modelo da peste tinha duas vantagens: ele permitia gerir intimamente a vida
concreta das pessoas, e sua motivação aparente era nobre: "curá-las". Por isso,
aliás, ele contaminou o modelo da lepra: quase não há mais detenção (modelo da
lepra) que não cultive a ilusão de que ela será, para o detento, uma ocasião de
redenção ou de cura (modelo da peste).



Hoje, podemos ser infratores e incômodos, mas raramente somos "ruins" e
irrecuperáveis: seremos emendados pelos bons cuidados da sociedade, pois, de fato,
éramos (ou melhor, estávamos) apenas "doentes". Será que este modelo nos deixa mais
livres? Engano. Atrás da face indulgente do poder que se inspira no modelo da peste
(o infrator estava doente, não fez por querer, está "desculpado"), esconde-se uma
face especialmente tirânica: qualquer ato dissonante é reconhecido não como fruto
de rebeldia ou originalidade, mas como efeito de uma patologia. Você é contra? Você
é diferente? Pois bem, você está doente. Não há mais dissenso -só enfermos e
loucos.



Voltemos à cracolândia. Talvez a toxicomania, uma vez instalada, seja uma espécie
de doença. Mas a escolha inicial de se engajar na droga, será que é uma doença?
Consideraremos doente (por alguma disfunção do córtex pré-frontal, por exemplo)
qualquer sujeito que não se autorregule como a gente?



Anos atrás, jovem psicanalista, no norte da França, eu me ocupava de
adolescentes "problemáticos" pelas drogas que consumiam, pela desistência escolar,
por uma criminalidade difusa e pela violência contra os adultos que se opunham a
suas vontades.



Alguns eram filhos de excluídos, outros inventavam uma marginalidade própria, não
herdada. Um desses jovens escutou pacientemente enquanto eu tentava convencê-lo a
frequentar as sessões de terapia e a aceitar a ajuda de uma assistente social, que
facilitaria sua reinserção. Quando acabei, ele me disse, pausadamente, olho no
olho: "O que lhe faz pensar que eu queira ter uma vida parecida com a
sua?".



Conclusão. Podemos tentar curar os "noias", ou seja, esperar suprimi-los de um
jeito mais radical do que apenas prendendo-os. De qualquer forma, agimos porque os
achamos insalubres para nós.



E peço que ninguém pretenda me convencer que a dita cura, à diferença da segregação
ou das porretadas, seria para o bem (ou para a dignidade) deles. Detalhe.
Originalmente, os modelos da lepra e da peste foram maneiras diferentes de lidar
com o risco de um contágio.



Quando tentamos "curar" vagabundos ou drogados talvez estejamos também reagindo ao
risco de um contágio pelas margens sociais. Como assim? Nunca estamos realmente
convencidos de que temos razão de sermos bem pensantes e bem comportados. "Curar" à
força os perdidos da cracolândia nos ajuda a evitar a sedução que sua "noite suja"
exerce sobre nós.



Data: 19/01/2012
Veículo: Folha de S.Paulo

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