Ana Regina Machado²
Podemos tomar 2003 como o marco da construção de uma política pública de saúde
para usuários de drogas no Brasil. Foi neste ano, que o Ministério da Saúde
apresentou uma proposta de atenção, claramente influenciada por duas grandes
experiências, a Reforma Psiquiátrica e o Programa Nacional de DST/ AIDS - mais
especificamente pelos Projetos de Redução de Danos.
para usuários de drogas no Brasil. Foi neste ano, que o Ministério da Saúde
apresentou uma proposta de atenção, claramente influenciada por duas grandes
experiências, a Reforma Psiquiátrica e o Programa Nacional de DST/ AIDS - mais
especificamente pelos Projetos de Redução de Danos.
Tais experiências permitiram a construção de uma proposta que buscou produzir uma
ruptura com as formas tradicionais de atenção a usuários de drogas, construídas e
amparadas por marcos legais, convenções internacionais e por representações
sociais que criminalizavam, segregavam, penalizavam e produziam guerras e
intolerâncias às drogas e aos usuários.
O Ministério da Saúde, de maneira ousada e não ingênua, buscou incluir a atenção a
usuários de drogas no Sistema Único de Saúde, a partir de uma concepção que se
distanciava e problematizava o senso comum, alguns setores da academia, a mídia,
as leis sobre drogas. Uma concepção que reconhecia e nomeava diferentes formas
de uso, que ousou falar em uso seguro, uso prejudicial, dependência... Podemos
dizer que a Política, valendo-se de uma lucidez rara até mesmo nos dias de hoje, que
colocou em suspensão moralismos e fatalismos que comumente entorpecem a razão
de quem discute o tema, permitiu imediatamente a colocação de várias questões:
Há usos que não são prejudiciais? Há usos que são seguros? A abstinência das
drogas é meta exclusiva de qualquer prática de saúde? Todas as pessoas que fazem
uso de drogas precisam de atenção no campo da saúde? As práticas de saúde
podem ter como resultado uma situação de uso não prejudicial ou de uso seguro?
Quais as redes e os serviços necessários para o acolhimento de uma pessoa
dependente ou que faz uso prejudicial de drogas? Tais questões, que foram
provocadas ou atualizadas pela Política, contribuíram para fazer surgir, de maneira
mais intensa no Brasil , o debate sobre as duas grandes concepções que norteiam as
abordagens a usuários de drogas: a guerra às drogas e a redução de danos.
Se é nítida a influência dos Projetos de Redução de Danos na concepção da política,
a construção de práticas de atenção recebe grande influência do processo de
Reforma Psiquiátrica. A atenção é, então, proposta em diferentes pontos, em serviços
abertos e territorializados, em espaços especializados (CAPS AD a princípio e mais
recentemente, a partir de 2009, consultórios de rua, casas de acolhimento transitório
) e não-especializados (hospitais gerais, atenção primária).
Muitos questionaram os pressupostos e as proposições dessa Política. Nem mesmo
no âmbito do governo federal, havia uma simpatia, uma adesão ao que o Ministério
apresentava como proposta. O que era proposto causava um certo estranhamento,
transcendia em muito o campo da saúde, novas concepções sobre o uso e sobre os
usuários (cidadãos/ sujeitos), novas formas de cuidar, novos objetivos para o cuidar...
Muitas eram as novidades, mas todas coerentes com os princípios do SUS, com o
direito universal às condições que proporcionam saúde , com o direito universal ao
acesso a serviços de saúde.
Nos oito anos de implantação da Política e, mais especificamento nos dois últimos
anos, podemos constatar alguns retrocessos, avanços e continuidades em relação ao
que foi proposto em 2003.
Começo pelas continuidades. Destaco aqui uma dificuldades que persiste e que a
concepção veiculada pela Política não foi suficiente para superar; a de dimensionar e
identificar o que de fato é problema nas situações de uso de drogas, seja para uma
pessoa, para um território, para uma sociedade. A complicada presença do crack na
cena social atual ilustra muito bem isto... Não se trata de negar os
comprometimentos/sofrimentos relacionados ao consumo de crack, mas de questionar
a sua eleição como o novo inimigo que precisa ser vencido. O que será mesmo que
estamos deixando ver, com a visibilidade adquirida pelo crack? Minayo nos ajuda a
compreender o que se passa:
[...] a própria sociedade se ‘droga’ com as ‘drogas’, criando sua
toxicomania, buscando escapar, sobretudo, de problemas
socioestruturais e culturais muito profundos, assim como de angústias
existenciais, desemprego, miséria, guerras internas e externas,
conflitos geracionais, mudanças velozes na cultura, dentre outras
questões [...] Por vezes, tem-se a impressão de que nada mais
acontece na sociedade a não ser a droga, a violência e suas
consequências (MINAYO, 2003, p. 20) (3)
Por que tanta dificuldade para construir respostas sensatas, possíveis ao que é étoxicomania, buscando escapar, sobretudo, de problemas
socioestruturais e culturais muito profundos, assim como de angústias
existenciais, desemprego, miséria, guerras internas e externas,
conflitos geracionais, mudanças velozes na cultura, dentre outras
questões [...] Por vezes, tem-se a impressão de que nada mais
acontece na sociedade a não ser a droga, a violência e suas
consequências (MINAYO, 2003, p. 20) (3)
problemático na área de drogas. Por que a insistência na guerra a uma droga? Por
que não se aproximar dos usuários, compreender melhor o que se passa e buscar
construir saídas? Lembro-me aqui de fragmentos, de algumas falas que podemos
encontrar no documentário " Quebrando o Tabu", dirigido por Fernando Grostein. Ruth
Dreifuss, ex-presidente da Suíça nos lembra a opção pela guerra às drogas é sempre
uma opção por uma guerra às pessoas, às pessoas que se envolvem com drogas.
Apresenta a estratégia adotada em seu país de aproximar os centros de apoio social
e de saúde dos usuários. É um usuário que apresenta os efeitos desta Política.
"Este sistema permitiu que eu me mantivesse saudável, enquanto
consumia drogas. Eu pude evitar riscos graças à existência destes
sistema. E assim pude reconstruir minha vida de um modo menos
destrutivo. Estou há quase dois anos sem consumir drogas...."
Insisto na pergunta por que não se aproximar dos usuários, compreender melhor o
que se passa e buscar construir saídas? Por que a opção pela segregação de
usuários? Por que, a partir de um “ideal de cura” ou de uma “tirania da saúde" (4)
retirar do nosso campo de visão algumas pessoas embaraçadas com as formas de
satisfação que conseguiram encontrar ?
Passo agora ao retrocesso. Penso que a onda conservadora que vem se
apresentando no debate em torno da abordagem do uso e da dependência de drogas
pode trazer consequências não só para a área de álcool e drogas, mas também para
a saúde mental, para o SUS e para a sociedade (5) . Uma certa lógica manicomial
parece permear as falas dos ministros, assim como as propostas apresentadas no
lançamento do Plano Nacional de Combate ao Crack; consultório de rua como
estratégia para fazer internação voluntária, afirmação do financiamento público de
comunidades terapêuticas; câmeras na rua para coibir uso e tráfico... Tal lógica
parecer também permear experiências como o acolhimento involuntário no Rio de
Janeiro. Tenta-se afirmar a internação como a resposta necessária, “ a novidade que
faltava”. Lembro-me de um reunião do Conselho Estadual Antidrogas, quando um dos
conselheiros falava da necessidade de um lugar para onde os usuários pudessem ser
encaminhados, dizia ele, não seria bem um hospital, nem bem uma prisão... Lembro-me
também de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em
que um expositor apresentava um trabalho bastante arrojado que tinha desenvolvido
na área de segurança pública, que tinha como uma das grandes conclusões a
necessidade de criação de um lugar para onde os usuários/dependentes de drogas
pudessem ser encaminhados. Não há dúvidas que, em um cenário alarmista como o
atual, a maior parte dos trabalhadores e familiares endossarão as indicações de
internação. Como comenta Rafael Gil, redutor de danos e mestrando em Psicologia
Social:
...os profissionais de saúde e familiares não terão elementos para
julgar o que são demandas de internação ou não, eles mais
provavelmente desejarão internar a todos, já que não estão recebendo
incentivos para pensar outros modos, além de um sensacionalismo
antidrogas (GIL, 2011)(6)
Utilizo aqui as palavras de Nery, retiradas de uma entrevista recente no Jornal “A
Folha de São Paulo”, que nos adverte sobre os efeitos das práticas de internação -
sobretudo as involuntárias:
Voltar 50 anos e fazer uma higienização das ruas das cidades
brasileiras me parece um retrocesso para não dizer um absurdo do
ponto de vista técnico. Sabemos, após 30 anos trabalhando na área,
Não podemos afirmar que a rede implantada no Brasil até o momento prescindiu da
internação, mas certamente tem construído cotidianamente, de maneira responsável,
práticas de cuidado em liberdade, que respeitam as particularidades e os embaraços
subjetivos, que preservam e constróem laços sociais, que promovem a cidadania.
Introduzo, com estas considerações sobre as práticas de saúde , alguns avanços
proporcionados pela política de saúde para usuários de drogas. Penso eu , que os
avanços que poderão fazer frente à onda conservadora que tem se apresentado
correspondem sobretudo à apropriação das concepções veiculadas pela Política de
2003 por trabalhadores, gestores e usuários. Lembro-me aqui de uma consideração
de Norbert Elias, sociólogo alemão, que afirmou que não há outra forma de mudar as
concepções que se tem a respeito de um fenômeno a não ser pela fala. É no espaço
da fala que o novo pode surgir. Entendo que a Política nos ajudou a falar e a
compreender de uma nova maneira o uso e os usuários de drogas. Penso que,
apesar das oscilações da política, os trabalhadores de saúde que já desenvolveram
práticas na área de álcool/drogas não conseguirão pensar em abordagens de
situações de uso/ usuários, sem considerar alguns pressupostos e problematizações
da Política, até mesmo porque eles estão mais de acordo com as situações que se
apresentam. Não há dúvidas quanto às diferentes relações que as pessoas
estabelecem com as drogas, quanto à impossibilidade de alguns de abandonarem as
drogas, quanto ao reconhecimento de que as drogas não serão erradicadas da
sociedade, quanto à importância do vínculo para viabilizar um cuidado, quanto à
necessidade da disponibilidade para a escuta das pessoas que usam drogas, quanto
à articulação da redes de atenção... Isto - uma nova concepção apropriada por
trabalhadores, usuários, movimentos sociais - certamente fará diferença no “museu de
grandes novidades” que se apresenta no campo da assistência a usuários de drogas.
Penso que é um equívoco buscar saídas para problemas atuais, complexos, em
práticas antigas e reducionistas, sabemos que elas não apresentam boas respostas
aos problemas humanos. Não se trata também de adotar a lógica dessas práticas
antigas nos novos serviços. Penso que a política que vem se apresentando instaura
mais uma vez a confusão entre tratar, cuidar, punir, criminalizar, segregar...
Certamente é um passo atrás no que vínhamos buscando construir. Talvez o passo
adiante caberá a nós, no cotidiano dos nossos serviços, nas mobilizações que estão
surgindo, enfim, na luta que é técnica, teórica, mas também é política.
1 Texto apresentado no Seminário “Uso prejudical de álcool e outras drogas como sofrimento mental:
a lógica de cuidado no SUS”, realizado na Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, em dezembro
de 2011.
2 Psicóloga. Especialista em Saúde Mental. Mestre em Saúde Pública. Foi diretora do Centro Mineiro
de Toxicomania / FHEMIG em Belo Horizonte/ MG.Foi referência técnica em atenção a usuários de
Drogas da Coordenação Estadual de Saúde da SES/ MG. É técnica do Grupo de Produção Temática
em Saúde Mental da Escola de Saúde Pública/ MG.
3 MINAYO, M C. Sobre a toxicomania da sociedade. In: BAPTISTA et alli (orgs). Drogas e Pós-
Modernidade: faces de um tema proscrito. Rio de Janeiro: FAPERJ/ EDURJ, 2003. p. 13-29.
4 Expressão utilizada por Arnor Trindade no texto “ A Saúde Tirana” disponível em: http://saudelivre.
blogspot.com/2011/10/saude-tirana.html.
5 Talvez no campo da saúde mental e do SUS haja algo mais consolidado. Apesar de alguns “vetos
implícitos” que o SUS vem sofrendo, de acordo com MENICUCCI, Telma Maria Gonçalves. O
Sistema Único de Saúde, 20 anos: balanço e perspectivas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.
25, n. 7, July 2009 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2009000700021&lng=en&nrm=iso>. access on 04 Dez 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
311X2009000700021.
6 Gil, R. Para além dos slogans - o que foi prometido e o que poderá ser cumprido norecém-lançado
Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack. 2011, disponível em :http://saudelivre.
blogspot.com/2011/12/para-alem-dos-slogans-o-prometido-e-o.html.
que quando vamos para as ruas e nos tornamos instrumento dessa
internação compulsória, as pessoas fogem de nós como o diabo foge
da cruz (NERY,2011).
7 In: SADI, A. Governo erra ao focar o crack, diz médico. Folha de S. Paulo. São Paulo, 11 dez. 2012.
Folha Cotidiano, p. 12.
a lógica de cuidado no SUS”, realizado na Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, em dezembro
de 2011.
2 Psicóloga. Especialista em Saúde Mental. Mestre em Saúde Pública. Foi diretora do Centro Mineiro
de Toxicomania / FHEMIG em Belo Horizonte/ MG.Foi referência técnica em atenção a usuários de
Drogas da Coordenação Estadual de Saúde da SES/ MG. É técnica do Grupo de Produção Temática
em Saúde Mental da Escola de Saúde Pública/ MG.
3 MINAYO, M C. Sobre a toxicomania da sociedade. In: BAPTISTA et alli (orgs). Drogas e Pós-
Modernidade: faces de um tema proscrito. Rio de Janeiro: FAPERJ/ EDURJ, 2003. p. 13-29.
4 Expressão utilizada por Arnor Trindade no texto “ A Saúde Tirana” disponível em: http://saudelivre.
blogspot.com/2011/10/saude-tirana.html.
5 Talvez no campo da saúde mental e do SUS haja algo mais consolidado. Apesar de alguns “vetos
implícitos” que o SUS vem sofrendo, de acordo com MENICUCCI, Telma Maria Gonçalves. O
Sistema Único de Saúde, 20 anos: balanço e perspectivas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.
25, n. 7, July 2009 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2009000700021&lng=en&nrm=iso>. access on 04 Dez 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
311X2009000700021.
6 Gil, R. Para além dos slogans - o que foi prometido e o que poderá ser cumprido norecém-lançado
Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack. 2011, disponível em :http://saudelivre.
blogspot.com/2011/12/para-alem-dos-slogans-o-prometido-e-o.html.
que quando vamos para as ruas e nos tornamos instrumento dessa
internação compulsória, as pessoas fogem de nós como o diabo foge
da cruz (NERY,2011).
7 In: SADI, A. Governo erra ao focar o crack, diz médico. Folha de S. Paulo. São Paulo, 11 dez. 2012.
Folha Cotidiano, p. 12.
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