quarta-feira, 21 de março de 2012

O PAPEL DO CAPS AD NA ATENÇÃO A USUÁRIOS DE DROGAS*




Arnor Trindade- Psicólogo,Especialista em Dependência Química


Tradicionalmente, no Brasil, a atenção ao usuário de drogas vinha sendo deixada de lado pelo poder público. À exceção de um ou outro dispositivo público, como o Centro Mineiro de Toxiicomania, em Belo Horizonte, o atendimento vinha sendo realizado, bem ou mal, com pouca ou nenhuma fiscalização, por instituições privadas, sobretudo pelas comunidades terapêuticas, que ganharam força  no início dos anos oitenta, proliferando no vácuo de políticas públicas e de saúde para o público ao qual aqui se refere. A partir de 2003, com o estabelecimento da Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas , o Ministério da Saúde abre caminho para que o SUS se estruture para o atendimento a pessoas em situação de abuso e dependência de drogas. Embora estejamos ainda muito longe de efetivar o acompanhamento adequado para este público no âmbito da saúde pública, alguns avanços significativos podem ser apontados. Dentre estes avanços está a criação e o fomento de dispositivos então chamados de CAPSad1.

Faz-se necessário, portanto, clarificar que este dispositivo, estruturado a partir das experiências com os CAPS gerais, sendo pensado num primeiro momento como um serviço substitutivo aos hospitais psiquiátricos, se coloca no campo do tratamento de forma diferenciada em relação aos outros CAPS, estabelecendo um antagonismo mais direto  em relação às CTs, por exemplo, que àqueles hospitais.

Assim, os CAPSad se vão se constituir, ao longo do tempo, a partir de duas referências fundamentais: Os CAPS gerais, dos quais ele se origina e com os quais busca identidade, e as CTs, dos quais ele se distingue e busca traçar suas diferenças.

Esta distinção não é meramente metodológica, como pode a primeira vista parecer, mas antes apontam para profundas divergências ontológicas e ideológicas que não cabem aqui aprofundar. Vale porém citar algumas diferenças visíveis na forma de abordar e tratar o problema da dependência de drogas: se de um lado busca-se apenas a abstinência total, sendo esta considerada como cura ou recuperação,  de outro utiliza-se da  redução de danos enquanto estratégia fundamental na abordagem ao usuário, prerrogativa esta que aponta para vários desenlaces possíveis para a relação do sujeito com sua droga; opõem-se também os regimes fechados das CTs ao funcionamento de porta aberta dos CAPS.

Esta última característica, o funcionamento de “portas abertas” que é uma das principais dos CAPSad, que o aproxima de outros CAPS,  significa que a qualquer momento, em quaisquer condições, o indivíduo doente pode procurar o CAPSad. Ele pode vir encaminhado por outro serviço de saúde, pela ação social ou pela justiça, pode chegar trazido por familiares ou pela polícia, pode vir por demanda espontânea ou trazido por uma comunidade terapêutica. Pode chegar deprimido ou em surto psicótico, intoxicado ou ferido, motivado ou não para o tratamento, interessado ou não em parar de consumir drogas.Isto faz uma grande diferença em relação a outros modos de tratamento. Esta postura acolhedora vai de encontro a diretrizes e princípios do SUS de universalidade e acessibilidade. Não há restrição ao paciente, não há imposição de posturas e valores morais, não há distinção de raça, credo, cor, gênero, situação sócio econômica, morbidade clínica ou psiquiátrica. Todos são acolhidos2.

Ao entrar pelas portas abertas do serviço, no entanto, o paciente/usuário ainda não entrou em tratamento. Isto significa que ele não foi ainda avaliado, não foi diagnosticado, não se iniciou com e para ele um projeto terapêutico. Não houve ainda uma adesão, mesmo que inicial. Por outro lado, ao cruzar o portão do CAPS, o paciente recebe um tratamento  na portaria, um tratamento na recepção, e é a partir daí que se constrói sua relação com o CAPS, seguindo para o acolhimento estruturado, onde é feita a anamnese e uma coleta mais precisa de dados e daí para observação, consultas, permanência-dia, oficinas, conforme for o caso.

Consideramos, portanto, que para o  paciente só  inicia um  tratamento propriamente dito,  do ponto de vista mais técnico e formal,  direcionado para aquele caso específico, no momento em que é formulado um projeto terapêutico e este é colocado em prática e cumprido no todo ou em parte. Consideramos então que houve uma adesão inicial, e um acordo com o paciente – e familiares, quando possível -a partir do qual o paciente estará vinculado de algum modo  ao serviço.

Diferente do modo de operar da maioria das comunidades terapêuticas, por exemplo,  não há um contrato único, um tempo único,  um padrão único de tratamento a ser seguido por todos. Cada indivíduo vai ter o seu relacionamento com o serviço estabelecido de forma distinta: Este ficará em permanência –dia intensiva, participando ou não de oficinas laborativas, aquele outro participará de um grupo específico (tabagismo, estratégico, motivacional...), um terceiro ficará apenas com acompanhamento individual em consultas ambulatoriais, etc.

Não há, como se vê, um pacote único de tratamento para todos os pacientes, mas antes um conjunto de atividades até certo ponto flexíveis, que pretendem atender aos usuários em suas idiossincrasias.  Deve-se ressaltar, no entanto, que a adesão do usuário ao serviço não significa adesão ao tratamento, uma vez que em muitos casos, o usuário busca por ganhos secundários oferecidos. Cabe à equipe, nestes casos, identificar a situação e tentar motivar o paciente para outros ganhos, considerados primários, e mais relacionados com a proposta do serviço.


Um serviço de portas abertas para a entrada, deve ser também de portas abertas para as saídas, que são diversas. Diante desta afirmação, cabe-nos perguntar qual é o momento da alta. A alta não representa necessariamente o fim do tratamento, nem deve ser, uma vez que consideramos este dispositivo, o CAPSad, como de atendimento da crise. Em muitos casos o paciente é encaminhado para uma continuidade  em PSFs , sob supervisão da equipe de saúde mental. Assim como o usuário ingressa no tratamento de diversas maneiras, são variadas também formas de  sua saída. As altas em alguns CAPSad são por especialidade ou por atividade: por exemplo, o paciente pode receber alta da psicoterapia ou da psiquiatria e continuar sendo tratado no CAPS.Pode também receber alta de um grupo ou da permanência dia e continuar sendo assistido em consultas previamente agendadas.

Muitas vezes o próprio paciente se dá alta. Ele chega para o profissional que o acompanha e solicita esta alta, ele diz: “Quero voltar a trabalhar, sinto que já estou em condições para isto”, ou “Já consegui parar de beber, não preciso mais vir aqui”. Esta manifestação do paciente sempre deve ser considerada, uma vez que o projeto terapêutico é uma construção em conjunto com ele. Em alguns casos não é mesmo o momento da alta, mesmo quando demandada pelo paciente, e isto deve ser problematizado e discutido com ele, com familiares e com a equipe que o acompanha.

Há ainda vários casos de abandono. Estes abandonos podem ser por dificuldade de adesão e continuidade do tratamento, mas pode ser também porque para aquele indivíduo o tratamento já alcançou os objetivos propostos. Este objetivos são variados: para uns a abstinência total, para outros a redução do uso e um maior controle, para outros ainda uma melhora nas condições clínicas gerais, para outros a cessação de uso de um tipo de droga específica, mesmo que se mantenha o uso de outra (s). Há pacientes que após a alta ficamos sabendo que não retornou ao uso da sustância problema. Outros, pelo contrário, passam por constantes recaídas, e muitas vezes voltam ao CAPSad. Alguns, após as recaídas, procuram outras modalidades de tratamento, podendo ou não retornar ao CAPS.

Alguns saem do serviço abstinentes, e neste aspecto me parece que o índice de sucesso não difere muito dos de outras modalidades de tratamento, embora ainda não tenhamos um levantamento estatístico a respeito. Mas de modo geral, acredito que todo usuário, ou pelo menos a maior parte , dos que passam pelo tratamento no CAPSad, obtêm algum benefício com o tratamento. Eles podem apresentar melhoras clínicas pontuais, recuperações de capacidade cognitiva, social, laboral, etc, em diferentes momentos e em diferentes proporções. Alguns dos avanços na saúde e qualidade de vida dos indivíduos atendidos podem ser definitivos, incorporados efetivamente, e suas vidas ganharem, a partir do tratamento, outra direção.


Não poderia deixar de enfatizar que, sob meu ponto de vista, o CAPSad é um projeto em construção. Deste modo, há muitas ações novas, ainda mal instituídas, no limite entre a construção técnica científica formal e atividades de ensaio do tipo “tentativa e erro”. Devo admitir que no cotidiano dos  serviços  comete-se ainda muitos equívocos. Parte deles se deve à formação profissional de boa parte dos operadores da saúde, uma vez que o tratamento ao dependente de drogas está fora da grande maioria dos currículos. Este déficit da formação acadêmica faz com que efetivamente os profissionais se formem na prática do serviço.

Outra questão relevante me parece ser o posicionamento político ideológico de alguns profissionais em serviço. O CAPSad, como já foi dito, surge no bojo da Reforma Psiquiátrica e da luta Antimanicomial. Está portanto vinculado à uma corrente de pensamento e a um movimento social. Não é recomendável, ao meu ver, estar neste dispositivo e exercer uma clínica apolítica, com uma postura indiferente a toda a repercussão social que o uso de drogas e o seu tratamento provoca. Numa prerrogativa ética, a atuação profissional implica um certo engajamento.

Boa parte, porém, das questões pertinentes ao funcionamento de um CAPSad ,se devem ao modelo adotado e à estruturação do próprio serviço. A adoção do modelo CAPS para atendimento ao toxicômano, no meu modo de ver, foi uma decisão acertada da gestão do SUS, dos formuladores da política assistencial. As colocações feitas anteriormente apontam para a pertinência deste modelo. No entanto, há algumas particularidades que devem ser ressaltadas e que distinguem o CAPSad dos outros CAPS.

Uma questão que me parece pertinente é a que diz respeito às questões sociais envolvendo o uso de drogas, sobretudo a ilegalidade do uso de algumas drogas. Esta é uma questão extremamente relevante que traz consigo riscos sociais que não são exclusivos do efeito das droga no organismo. O impacto social do uso de drogas nos faz pensar que muitas vezes há um equívoco no diagnóstico se ele se prende ao CID 10, por exemplo, tratando o problema meramente como o efeito de uma substância  num organismo. Mais que isto, é importante pensar no efeito do uso de drogas na vida de um grupo ou de um indivíduo.

Uma outra questão que me parece bastante relevante são as sequelas orgânicas provocadas pelo uso de drogas. Nos CAPS ad percebe-se uma preocupação muito maior com o corpo do que geralmente acontece em outros CAPS, algo que pode ser daí aprendido. Então há todo um cuidado em aferir dados vitais e atenção a qualquer alteração clínica que apareça: uma inapetência, uma náusea, sudorese, etc. Este cuidado faz com que o CAPSad se aproxime mais de outros serviços de urgência como Unidades de Pronto Atendimento e Hospitais Gerais do que de outros dispositivos psiquiátricos.

O modo como cada CAPSad responde a estas e outras questões vai depender de como ele é estruturado, da equipe e dos equipamentos que dispõe, do seu horário de funcionamento, etc; mas também da rede em que ele está inserido.
É importante destacar a dimensão da assistência social deste serviço, que se coloca  para os profissionais do CAPSad, como uma questão cotidiana. A repercussão social do uso de drogas, como dito antes, é extremamente relevante na abordagem aos usuários: alguns residem nas ruas ou estão em abrigos, outros perderam a guarda dos filhos ou estão em vias de perder, outros são agentes ou vítimas de violência, estão ameaçados  e querem um local de proteção.

Para muitos usuários do serviço, estar no CAPSad é a garantia de poder fazer uma refeição, de tomar banho, de ter um teto, mesmo que somente durante o dia.  O CAPS torna-se assim, algumas vezes, não uma saída, mas um refúgio, o que deve ser sempre problematizado.

Acredito, de fato, no modelo CAPS para a atenção ao usuário de drogas. Com todas os problemas ele me parece um dispositivo muito mais amplo, abrangente e eficiente do que outros modelos para atender o usuário em crise. Mas é preciso lembrar, apesar da sua importância,  que o CAPSad deve ser mais um dispositivo entre outros para a atenção a este público. Ele precisa contar com uma rede que lhe dê sustentação: equipes de atenção primária, serviços de pronto atendimento e, quando possível, estratégias de abordagem em território e proteção. O modelo é promissor, e vem apresentando bons resultados.Precisa ser, sem dúvida, aprimorado e desenvolvido, articulado cada vez mais a uma rede na qual ele, sem dúvida, exerce um papel fundamental.



Bibliografia:
1. DE LEON, George. A Comunidade Terapêutica: Teoria, Modelo e Método. Ed. Loyola, 2003;
2. MACHADO, Ana Regina; MIRANDA, Paulo Sérgio Carneiro. Fragmentos da história da atenção à saúde para usuários de álcool e outras drogas no Brasil: da Justiça à Saúde Pública. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.3, p.801-821, jul.-set. 2007
3. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde Mental no SUS: os centros de atenção psicossocial- Brasília, 2004

*Texto apresentado no Seminário de Atenção à Saúde, em 20 de Março de 2012, em Divinópolis, MG.

4 comentários:

  1. A generalização é sempre um recurso perigoso, temerário.Nem todas as CTs acreditam apenas na "abstinência total", ou veem-na como "cura ou recuperação". Na CT, em que trabalho, reconhece-se o mérito da redução de danos, mas entende-se que esta não serve para todos. Acredita-se que algumas pessoas necessitam da abstinência total enquanto que outras não. Na nossa CT também temos espaço para aqueles que fazem a redução de danos. Por que o que para nós é fundamental em qualquer tratamento é o desenvolvimento da resiliência e, para esse desenvolvimento oferecemos um programa em que se trabalha a baixa autoestima, os complexos de inferioridade, o medo da crítica, etc. Esse trabalho se dá em cima da quebra de paradigmas, do confronto de valores, enfim, da desconstrução de uma forma massificada e padronizada de pensar e da construção de uma verdade própria, de uma forma própria de pensar a vida, a sociedade, o ser e as relações interpessoais.Portanto,nesse espaço cabem todas as formas de tratamento e, inclusive a redução de danos e a abstinência total. Mais que "portas abertas" precisamos de "mentes abertas"

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    1. Oi, Janete, obrigado pelo comentário. De fato, tenho notícias de comunidades terapêuticas que trabalham numa perspectiva de redução de danos em vários países europeus. Não conheço este trabalho aqui no Brasil e fico curioso em relação à CT que você trabalha.

      A perspectiva da redução de danos não exclui a possibilidade da abstinência, apenas não a delimita como o fim a ser alcançado. Eu, particularmente, prefiro trabalhar com a ideia de intervalo entre usos. O termo abstinência vem carregado de conotação religiosa, de purificação, de penitência.

      Abraço!

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  2. Como eu faço para denuciar uma clinica de recuperação,que no mesmo local juntos estão menores com maiores alguns deliquentes,juntos com pessoas idosas,sem estrutura aonde falta agua tendo que os internos lavarem louças com agua da chuva comida esca e ourtros

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    1. Nossa, isso é muito grave, vá na ouvidoria local isso não pode continuar assim.

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