sexta-feira, 6 de abril de 2012

A rede de atenção aos usuários de drogas: experiências no campo*



– Fabíola Moreira Alvarenga - Psicóloga - CERSAM AD Pampulha


Dentre as diretrizes do SUS está o princípio da universalidade que reconhece a saúde como um direito fundamental do ser humano. A política do Ministério da saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas datada de 2003 estende este direito a estes usuários, que por tanto tempo permaneceram marginalizados, confinados às bocas de fumo e às sargetas, sem acesso aos serviços de saúde. O CAPsad é um dos dispositivos criados na rede pública para dar suporte àqueles que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, assim como fazer a acolhida necessária à família destes pacientes.
Desde sua inauguração, em 2008, o Cersam-AD tem se consolidado como espaço de referência para os usuários de álcool e outras drogas das regionais Norte, Pampulha, Noroeste e Venda Nova e para mim, profissional desde serviço desde a sua fundação, fica claro a importância dos serviços substitutivos como espaços de tratamento a serem firmados e implementados. Trabalhamos na perspectiva da redução de danos, estratégia que não exige que a abstinência seja uma condição para o ingresso no tratamento. Construímos, juntamente com o paciente, projetos de tratamento flexíveis, que respeitem o tempo do paciente, suas necessidades e seu desejo, seja ele de reduzir o consumo de substâncias psicoativas, seja o desejo de permanecer abstinente e interromper o uso. Nem sempre os familiares ou acompanhantes do paciente entendem esta perspectiva, pois acreditam que a abstinência é o único caminho possível. Sendo assim, é necessário orientar os familiares individualmente e incentivar a sua participação em reuniões de família com o objetivo de criar debates, desfazer preconceitos e ideais. É muito importante que durante o tratamento do paciente a família também seja escutada. Ainda que o serviço não tenha respostas prontas a oferecer e nem garantias de um tratamento bem-sucedido, podemos oferecer uma acolhida, orientar sobre o projeto de tratamento firmado com o paciente, suas chances de melhora e que, por mais que isso lhe pareça estranho, as recaídas podem acontecer ao longo do percurso, o que não invalida o tratamento e nem o que já foi alcançado durante este período. Ao escutar os familiares o profissional deve estar capacitado para colher as identificações e com elas manejar, relativizando posições moralistas a respeito dos pacientes, por exemplo, “meu filho bebe porque não tem vergonha na cara” (sic), ou mesmo relativizar posições subjetivas que os familiares possuem a respeito de si mesmos, por exemplo, “sou mãe de paciente drogado (sic)”, “deixei de viver a minha vida para cuidar do meu marido” (sic). O atendimento individual da família ou sua participação em grupos são dispositivos fundamentais para fazer vacilar alguns conceitos e criar possibilidades individuais para além do tratamento do paciente. Percebemos que muitos familiares deixaram de buscar projetos pessoais com o objetivo de responder a todas as demandas dos pacientes, algo que torna as relações adoecidas e, às vezes, enlouquecedoras.
Há relatos de famílias que abandonaram suas casas e deixaram seus pertences à mercê dos pacientes, “nós desistimos de tudo. Ele vendia geladeira, fogão, panela. Tínhamos que deixar tudo trancado. Depois de muitos anos decidimos deixar a casa para ele. Não sobrou nada, nem telha, nem maçaneta da porta. Fomos morar no caminhão. (sic)”. É necessário, portanto, resgatar a saúde das famílias e para tal é imprescindível contar com o apoio de toda a rede. Percebemos que quando a família é cuidada, os efeitos positivos no tratamento dos pacientes são visíveis.
Outro ponto que salta aos olhos na prática clínica é a importância da prevenção. Quando colhemos a história dos pacientes, percebemos que, a grande maioria, iniciou com o consumo de álcool e outras drogas ainda muito jovens, principalmente durante a adolescência. Torna-se fundamental que educadores e profissionais da saúde construam projetos de intervenção precoce, como é o caso do Consultório de Rua e o projeto Arte na Saúde. Embora o Cersam-AD seja um serviço de urgência e de atenção secundária, cuidamos do paciente como um todo e a perspectiva da prevenção continua presente em nossa prática. Por exemplo, orientamos com freqüência que o paciente busque o Centro de Saúde para cuidados com a alimentação, pressão arterial, diabetes, assim como tratamento dentário, grupos de tabagismo. Além disso, para aqueles pacientes que desejam permanecer abstinentes, trabalhamos com a prevenção das recaídas. Afinal, o que leva o usuário a consumir compulsivamente uma determinada substância? Para mim, esta é uma das questões mais importantes no que diz respeito à prática clínica. Responder a esta questão talvez seja o ponto de maior dificuldade para o paciente e o seu maior desafio. Durante os atendimentos vamos investigar os pontos de angústia, as frustrações, as tentativas anteriores de tratamento, os pontos traumáticos na história singular de cada sujeito. Sem este cuidado, sem esta escuta, o tratamento fica restrito a uma melhora aparente. É preciso dar um tratamento ao sintoma. Percebemos que o uso abusivo de qualquer substância é permeada por histórias de vida difíceis e por conflitos subjetivos não tratados. O consumo de uma determinada substancia nunca vem puro e sim atrelado a outras dificuldades, como quadros depressivos, conflitos homoafetivos, transtornos de humor, historias de abuso e violência, tentativas de auto-exterminio, abandono. Apostamos que através da palavra o paciente possa dar contorno àquilo que o aflige, ainda que muitas vezes o tempo da melhora não seja o nosso tempo, nem o tempo da família. Diante de tamanha complexidade, é fundamental a presença da família no tratamento, assim como a presença de outros pontos de apoio na rede. Para aqueles em situação de rua a presença de outros atores e instituições, como Abrigos Municipais, CRAS, Abordagem de Rua, ONGs, etc, é muito importante como referências para que o paciente volte a adquirir sua autonomia. Aliás, incentivar a autonomia e a responsabilização do paciente em seu tratamento são pontos fundamentais na prática clinica com o paciente.
No Cersam-AD temos duas modalidades de tratamento possíveis: o ambulatorial e a permanência-dia. No ambulatório atendemos casos em que o uso de álcool e drogas é abusivo, porém, o paciente ainda preserva laços de trabalho, consegue estudar ou, geralmente, possui um bom suporte da família. Após a melhora do quadro, o paciente é referenciado ao Centro de Saúde para dar continuidade a seu tratamento ou pode ser encaminhado para outros dispositivos da rede. Em regime de permanência-dia priorizamos casos graves em que o consumo de álcool e drogas é praticamente diário e as substâncias são ingeridas em grande quantidade. Além disso, a maioria destes pacientes apresenta grande vulnerabilidade, seja ela social, psíquica ou física. Os pacientes, em sua grande maioria, apresentam seus laços afetivos e sociais completamente dilacerados. Procuram ajuda porque percebem que “chegaram ao fundo do poço (sic)”. Sentem-se frustrados porque já tentaram várias modalidades de tratamento,
seja em hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas, grupos de AA. A permanência-dia apresenta várias funções. É um dispositivo que visa ser um espaço de proteção ao consumo desenfreado de determinada substância, além de ser um local onde o paciente pode conviver com outros usuários, trocar experiências, participar de grupos e oficinas. Durante a permanência-dia também podemos observar mais de perto aqueles pacientes mais debilitados ou que apresentam algum tipo de risco, por exemplo, de auto-agressão, além de ser um espaço onde a medicação pode ser mais bem administrada e os cuidados clínicos podem ser ofertados. Durante o período em que está inserido em permanência-dia (PD), o paciente é atendido regularmente por um profissional de nível superior que acompanha o seu caso e constrói, junto com o paciente, o seu projeto terapêutico. O tempo de permanência do paciente na PD varia de acordo com os casos, porém, é importante que este dispositivo seja visto como um espaço de proteção provisória, de modo que o paciente possa, de forma gradativa, retomar a sua vida e fazer novos laços para além do Cersam. Aqui, encontramos um novo desafio. Muitos pacientes apresentam dificuldade em desligar-se da permanência-dia. A redução dos dias de PD muitas vezes é sentida como “algo ruim”, tanto pelo paciente, quanto pela família. Alguns pacientes sentem-se “inseguros” (sic), “despreparados” (sic) e às vezes a redução de apenas um dia de PD gera grande angústia e constantes recaídas. Porém, a redução é necessária e imprescindível para a promoção da melhora do quadro clínico. É importante que o paciente reconstrua os seus laços. Incentivamos sua autonomia, a circulação na cidade, a busca por cursos de aperfeiçoamento, a busca por oportunidades de trabalho. Enfim, incentivamos a busca por algo que o enlace à vida. Como disse certa vez um paciente meu, “às vezes o Cersam vicia” (sic). Nós, profissionais que acompanhamos os casos, temos estar atentos a isso, pois se o Cersam pode viciar, corremos o risco de entrarmos no circuito de repetição do paciente e isso seria muito prejudicial para o seu tratamento. O que tentamos promover durante os atendimentos é justamente o contrário disso. É necessário que o paciente perceba por que repete e o que repete; por que ele usa determinada droga e não outra; o que há por trás da compulsão e da fissura. Penso que somente desta maneira o paciente poderá descolar-se do objeto droga e buscar em outros lugares a sua satisfação, o seu prazer. O Cersam não pode ser imprescindível, mas deve sim ser um espaço de referência onde o sujeito pode recorrer quando for necessário. 

*Texto apresentado no I Fórum Drogas: Liberdade, Diversidade e Cidadania, em 31 de março de 2012 

Um comentário:

  1. Valeu, Fabíola. Obrigado pela participação e pela disponibilização do texto.

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