– Fabíola Moreira Alvarenga - Psicóloga - CERSAM AD Pampulha
Dentre as diretrizes do SUS está o princípio da
universalidade que reconhece a saúde como um direito fundamental do
ser humano. A política do Ministério da saúde para a atenção
integral a usuários de álcool e outras drogas datada de 2003
estende este direito a estes usuários, que por tanto tempo
permaneceram marginalizados, confinados às bocas de fumo e às
sargetas, sem acesso aos serviços de saúde. O CAPsad é um dos
dispositivos criados na rede pública para dar suporte àqueles que
fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, assim como fazer a
acolhida necessária à família destes pacientes.
Desde sua inauguração, em 2008, o Cersam-AD tem se
consolidado como espaço de referência para os usuários de álcool
e outras drogas das regionais Norte, Pampulha, Noroeste e Venda Nova
e para mim, profissional desde serviço desde a sua fundação, fica
claro a importância dos serviços substitutivos como espaços de
tratamento a serem firmados e implementados. Trabalhamos na
perspectiva da redução de danos, estratégia que não exige que a
abstinência seja uma condição para o ingresso no tratamento.
Construímos, juntamente com o paciente, projetos de tratamento
flexíveis, que respeitem o tempo do paciente, suas necessidades e
seu desejo, seja ele de reduzir o consumo de substâncias
psicoativas, seja o desejo de permanecer abstinente e interromper o
uso. Nem sempre os familiares ou acompanhantes do paciente entendem
esta perspectiva, pois acreditam que a abstinência é o único
caminho possível. Sendo assim, é necessário orientar os familiares
individualmente e incentivar a sua participação em reuniões de
família com o objetivo de criar debates, desfazer preconceitos e
ideais. É muito importante que durante o tratamento do paciente a
família também seja escutada. Ainda que o serviço não tenha
respostas prontas a oferecer e nem garantias de um tratamento
bem-sucedido, podemos oferecer uma acolhida, orientar sobre o projeto
de tratamento firmado com o paciente, suas chances de melhora e que,
por mais que isso lhe pareça estranho, as recaídas podem acontecer
ao longo do percurso, o que não invalida o tratamento e nem o que já
foi alcançado durante este período. Ao escutar os familiares o
profissional deve estar capacitado para colher as identificações e
com elas manejar, relativizando posições moralistas a respeito dos
pacientes, por exemplo, “meu filho bebe porque não tem vergonha na
cara” (sic), ou mesmo relativizar posições subjetivas que os
familiares possuem a respeito de si mesmos, por exemplo, “sou mãe
de paciente drogado (sic)”, “deixei de viver a minha vida para
cuidar do meu marido” (sic). O atendimento individual da família
ou sua participação em grupos são dispositivos fundamentais para
fazer vacilar alguns conceitos e criar possibilidades individuais
para além do tratamento do paciente. Percebemos que muitos
familiares deixaram de buscar projetos pessoais com o objetivo de
responder a todas as demandas dos pacientes, algo que torna as
relações adoecidas e, às vezes, enlouquecedoras.
Há relatos de famílias que abandonaram suas casas e
deixaram seus pertences à mercê dos pacientes, “nós desistimos
de tudo. Ele vendia geladeira, fogão, panela. Tínhamos que deixar
tudo trancado. Depois de muitos anos decidimos deixar a casa para
ele. Não sobrou nada, nem telha, nem maçaneta da porta. Fomos morar
no caminhão. (sic)”. É necessário, portanto, resgatar a saúde
das famílias e para tal é imprescindível contar com o apoio de
toda a rede. Percebemos que quando a família é cuidada, os efeitos
positivos no tratamento dos pacientes são visíveis.
Outro ponto que salta aos olhos na prática clínica é
a importância da prevenção. Quando colhemos a história dos
pacientes, percebemos que, a grande maioria, iniciou com o consumo de
álcool e outras drogas ainda muito jovens, principalmente durante a
adolescência. Torna-se fundamental que educadores e profissionais da
saúde construam projetos de intervenção precoce, como é o caso do
Consultório de Rua e o projeto Arte na Saúde. Embora o Cersam-AD
seja um serviço de urgência e de atenção secundária, cuidamos do
paciente como um todo e a perspectiva da prevenção continua
presente em nossa prática. Por exemplo, orientamos com freqüência
que o paciente busque o Centro de Saúde para cuidados com a
alimentação, pressão arterial, diabetes, assim como tratamento
dentário, grupos de tabagismo. Além disso, para aqueles pacientes
que desejam permanecer abstinentes, trabalhamos com a prevenção das
recaídas. Afinal, o que leva o usuário a consumir compulsivamente
uma determinada substância? Para mim, esta é uma das questões mais
importantes no que diz respeito à prática clínica. Responder a
esta questão talvez seja o ponto de maior dificuldade para o
paciente e o seu maior desafio. Durante os atendimentos vamos
investigar os pontos de angústia, as frustrações, as tentativas
anteriores de tratamento, os pontos traumáticos na história
singular de cada sujeito. Sem este cuidado, sem esta escuta, o
tratamento fica restrito a uma melhora aparente. É preciso dar um
tratamento ao sintoma. Percebemos que o uso abusivo de qualquer
substância é permeada por histórias de vida difíceis e por
conflitos subjetivos não tratados. O consumo de uma determinada
substancia nunca vem puro e sim atrelado a outras dificuldades, como
quadros depressivos, conflitos homoafetivos, transtornos de humor,
historias de abuso e violência, tentativas de auto-exterminio,
abandono. Apostamos que através da palavra o paciente possa dar
contorno àquilo que o aflige, ainda que muitas vezes o tempo da
melhora não seja o nosso tempo, nem o tempo da família. Diante de
tamanha complexidade, é fundamental a presença da família no
tratamento, assim como a presença de outros pontos de apoio na rede.
Para aqueles em situação de rua a presença de outros atores e
instituições, como Abrigos Municipais, CRAS, Abordagem de Rua,
ONGs, etc, é muito importante como referências para que o paciente
volte a adquirir sua autonomia. Aliás, incentivar a autonomia e a
responsabilização do paciente em seu tratamento são pontos
fundamentais na prática clinica com o paciente.
No Cersam-AD temos duas modalidades de tratamento
possíveis: o ambulatorial e a permanência-dia. No ambulatório
atendemos casos em que o uso de álcool e drogas é abusivo, porém,
o paciente ainda preserva laços de trabalho, consegue estudar ou,
geralmente, possui um bom suporte da família. Após a melhora do
quadro, o paciente é referenciado ao Centro de Saúde para dar
continuidade a seu tratamento ou pode ser encaminhado para outros
dispositivos da rede. Em regime de permanência-dia priorizamos casos
graves em que o consumo de álcool e drogas é praticamente diário e
as substâncias são ingeridas em grande quantidade. Além disso, a
maioria destes pacientes apresenta grande vulnerabilidade, seja ela
social, psíquica ou física. Os pacientes, em
sua grande maioria, apresentam seus laços afetivos e sociais
completamente dilacerados. Procuram ajuda porque percebem que
“chegaram ao fundo do poço (sic)”. Sentem-se frustrados porque
já tentaram várias modalidades de tratamento,
seja em hospitais psiquiátricos, comunidades
terapêuticas, grupos de AA. A permanência-dia apresenta várias
funções. É um dispositivo que visa ser um espaço de proteção ao
consumo desenfreado de determinada substância, além de ser um local
onde o paciente pode conviver com outros usuários, trocar
experiências, participar de grupos e oficinas. Durante a
permanência-dia também podemos observar mais de perto aqueles
pacientes mais debilitados ou que apresentam algum tipo de risco, por
exemplo, de auto-agressão, além de ser um espaço onde a medicação
pode ser mais bem administrada e os cuidados clínicos podem ser
ofertados. Durante o período em que está inserido em
permanência-dia (PD), o paciente é atendido regularmente por um
profissional de nível superior que acompanha o seu caso e constrói,
junto com o paciente, o seu projeto terapêutico. O tempo de
permanência do paciente na PD varia de acordo com os casos, porém,
é importante que este dispositivo seja visto como um espaço de
proteção provisória, de modo que o paciente possa, de forma
gradativa, retomar a sua vida e fazer novos laços para além do
Cersam. Aqui, encontramos um novo desafio. Muitos pacientes
apresentam dificuldade em desligar-se da permanência-dia. A redução
dos dias de PD muitas vezes é sentida como “algo ruim”, tanto
pelo paciente, quanto pela família. Alguns pacientes sentem-se
“inseguros” (sic), “despreparados” (sic) e às vezes a
redução de apenas um dia de PD gera grande angústia e constantes
recaídas. Porém, a redução é necessária e imprescindível para
a promoção da melhora do quadro clínico. É importante que o
paciente reconstrua os seus laços. Incentivamos sua autonomia, a
circulação na cidade, a busca por cursos de aperfeiçoamento, a
busca por oportunidades de trabalho. Enfim, incentivamos a busca por
algo que o enlace à vida. Como disse certa vez um paciente meu, “às
vezes o Cersam vicia” (sic). Nós, profissionais que acompanhamos
os casos, temos estar atentos a isso, pois se o Cersam pode viciar,
corremos o risco de entrarmos no circuito de repetição do paciente
e isso seria muito prejudicial para o seu tratamento. O que tentamos
promover durante os atendimentos é justamente o contrário disso. É
necessário que o paciente perceba por que repete e o que repete; por
que ele usa determinada droga e não outra; o que há por trás da
compulsão e da fissura. Penso que somente desta maneira o paciente
poderá descolar-se do objeto droga e buscar em outros lugares a sua
satisfação, o seu prazer. O Cersam não pode ser imprescindível,
mas deve sim ser um espaço de referência onde o sujeito pode
recorrer quando for necessário.
*Texto apresentado no I Fórum Drogas: Liberdade, Diversidade e Cidadania, em 31 de março de 2012
Valeu, Fabíola. Obrigado pela participação e pela disponibilização do texto.
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