quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A RUA E A FOME: FAZER EXCEÇÃO AO "TODOS IGUAIS"


A RUA E A FOME: FAZER EXCEÇÃO AO TODOSIGUAIS1

Bárbara Coelho Ferreira2

A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...”

(Titãs - Comida)

A política da Psicanálise inaugura algo subversivo à lógica das democracias atuais. De um lado, a Psicanálise faz caber a exceção de cada um, dando lugar à singularidade apresentada no sinthoma. Do outro, a massificação, por meio da ideia dopara todos” e detodos iguais, traduz o modo como a política atual concebe sua visão da sociedade: míope, homogênea, igualitária.

Em defesa da lógica que marca a exceção, faremos um recorte particular, subjetivo e único da prática do Consultório de Rua - PBH (CR), seguindo os horizontes desta cidade que propõe e sustenta o lugar deste dispositivo como acompanhante daqueles que tomam o espaço da rua para fazer uso de drogas. A oferta de cuidados em saúde e a articulação de Rede, com base no viés da Redução de Danos e Reforma Psiquiátrica, é algo novo para a cidade e, ainda mais, inaugura a responsabilidade do poder público nas chamadascenas de usode drogas. Essa oferta vai na contramão das políticas higienistas dopara todosque constantemente param caminhões para recolher, levar e, mesmo, limpar a cidade desses que escapam à norma social e apontam para um gozo excessivo.

A escolha da região do município de Belo Horizonte que deu início ao trabalho do CR foi a chamadacrackolândiada cidade, a Pedreira Prado Lopes (PPL). O desafio é inaugurar outra lógica, num lugar marcado pela presença das políticas homogeneizadoras. A associação crack, lixo, resto não lugar à subjetividade. É preciso subverter!

Para tanto, a apresentação deste dispositivo será conduzida por Lucas3, 15 anos, que foi conhecido logo no início do trabalho de campo na PPL. Percebe-se que ele é um dos únicos adolescentes que circula pela região fazendo uso de crack, uma exceção. Chama atenção por sua baixa estatura, por estar sempre entre os adultos, pela postura arredia e desconfiada diante da presença do CR. Aos poucos, alguns sinais de que a aproximação da equipe passa a ser bem-vinda: passa a cumprimentar de longe, o que permite, no tempo do adolescente, chegar mais perto.

O que se anuncia de peculiar no estar ao lado de Lucas é ele sempre se posicionar de modo a responder às abordagens do CR de forma escorregadia. Demonstra dificuldade em fazer laço e, quando lhe é colocado um convite para conversar,trocar ideia, responde: com fome. Um ponto autístico do gozo, que aponta para a precariedade dos recursos simbólicos. Escapa à abordagem, às tentativas de fazer borda. Faz um furo!

É a partir desse ponto que se localiza o lugar de Lucas para as Políticas Públicas que ofertam proteção às crianças e aos adolescentes. É conhecido como aquele que faz uso de crack, evidencia o furo da Rede e que não temaderênciaao que lhe é proposto. foram feitas diversas tentativas de inclusão, reinserção, que Lucas por volta dos 10 anos de idade, após o assassinato de seu irmão mais velho, iniciou um desligamento da escola e da família, marcando seu encontro com as ruas e sua relação com as drogas, embora ele tenha sido abordado poucas vezes fazendo uso de crack. Miller (2003) nos adverte que a desinserção é um dos nomes para tratar o real de nossa época.

Ao lado das Políticas Públicas, está presente uma ânsia por solução, quase sempre marcadas pela via da política dopara todos, saídas que perpassam pelo viés da institucionalização. É algo que está colocado pela lógica de inserção a todo custo. As políticas caem numa exigência superegoica em nome da proteção. Sob a ótica da Psicanálise, Laurent ensina quea solução de cada um pode ser mais ou menos típica, mais ou menos apoiada sobre a tradição e as regras comuns. Ela pode, ao contrário, desejar realçar a ruptura ou uma certa clandestinidade” (LAURENT, 2006).



O desafio é se colocar de um outro modo, frente a esse sujeito, subverter a lógica dopara todos”, acolhendo os furos que ele apresenta, como ensina a Psicanálise. Assim, a presença do CR como primeira resposta ao com fomea oferta de lanches e, aos poucos, faz surgir intervalos maiores entre guloseimas e bate-papos. Há a construção de um laço singular, respeitando a frouxidão, os laces e desenlaces. Assim, Lucas começa a ter um lugar de referência com o dispositivo. Aponta para um significante da transferência quando me diz:você é da rua. Demanda sempre por comida, e são feitas outras ofertas: cinema, bate-papo, passeios, outras formas de apropriação da cidade. Aceita alguns convites ou sai correndo, outras vezes, quando a presença se faz excessiva.

A proximidade faz emergir uma pergunta:Vocês num levam pra casa, não?. E então é acompanhado até sua casa algumas vezes. Percebe-se um laço afetivo de Lucas com a família.Nunca deu trabalho em casa.Ele me respeita muito, diz sua mãe. Faz o constante movimento: rua-casa-rua. Circula em diversos pontos da cidade, está sempre entre adultos, e se faz presente a oferta de proteção e cuidados, que é conhecido como omenordo grupo. Desperta no outro o desejo de cuidar! Encontra, na sua relação com a rua, um Outro, um lugar.

Foi preciso entrar no circuito do gozo com fome, para que as articulações junto a Lucas se tornassem possíveis, e, assim, tem-se a abertura para ofertar um lugar de tratamento, permite incluir algo novo em seu percurso. Lucas é conhecido pela equipe do Centro de Referência em Saúde Mental da Infância e Adolescência (Cersami), mas diz não gostar de remédio, nem de médico:prefiro ir pra jogar futebol, fazer um lanche. Com a possibilidade de ser acompanhado pelo CR, aceita ir até parabater bola. É bastante cordial quando chega ao serviço e se apresenta de outra forma. Abraça as pessoas da equipe técnica, demonstra alguma familiaridade com o serviço. Fica por ali durante um tempo, permite alguma aproximação, mas logo falaeu num vou ficar aqui não, vou embora. Diz que está com fome, faz um lanche e pede para retornar para casa.

Entramos na rota desse curto-circuito rua-casa-rua, e uma pergunta se instala:Você pede para ser levado pra casa, para vir pra rua de novo?Responde de prontidão:Está tudo muito confundido mesmo. É assim que Lucas se apresenta, aponta estar fundido no Outro e demarca uma localização subjetiva para o sujeito. A confusão está posta, faz-se uma aposta: a de constituir outros Outros, modos mais flexíveis de gozo.

REFERÊNCIAS

GUERRA, A. M. C.: GENEROSO, C. M. A inclusão social pensada a partir da desinserção: uma contribuição da psicanálise ao campo da saúde mental. Disponível em: http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/posteres_iv_congresso/mesas_iv_congresso/mr08-andrea-maris-campos-guerra-e-claudia-maria-generoso.pdf. Acesso em: 10 ago. 2012.



LAURENT. É. "Princípios diretores do ato analítico In: A sociedade do sintoma a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006. Disponível em: http://ebpsp.node.com.br/index.phpoption=com_content&view=article&id=634:princ%C3%ADpios-diretores-do-ato-anal%C3%ADtico-%28v-enapol-preparatoria%29&catid=26:resenhas&Itemid=57. Acesso em 10 ago. 2012.

MILLER, Jacques-Alain. Rumo à PIPOL 4. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 60, p. 7-14, 2003.
__________________________________________________________________________________

1Texto apresentado na XVII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise Seção Minas Gerais: “A Política da Psicanálise na era do Direito ao Gozo”, 26 a 27 de outubro de 2012.

2 Psicóloga do Consultório de Rua Noroeste e do Centro de Referência em Saúde Mental da Infância e Adolescência (Cersami)Secretaria Municipal de SaúdePBH.

3Nome fictício.

Nenhum comentário:

Postar um comentário