terça-feira, 19 de março de 2013

Entrevista do Professor e Psiquiatra Dartiu Xavier à Revista Fórum

Dartiu Xavier: “Internação compulsória seria inaceitável em países de primeiro mundo”

Publicado em 24 de janeiro de 2013 às 7:03 pm · Adicionar comentário
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Para psiquiatra, o tratamento ambulatorial é mais eficaz e barato do que a internação involuntária
Por Felipe Rousselet
Na última segunda-feira (21), teve início a medida do governo do Estado de São Paulo que prevê a internação compulsória de dependentes de crack, ou seja, sem consentimento próprio ou da sua família.

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De acordo a Secretaria de Estado da Saúde, só na quarta-feira, 23, foram realizadas 11 internações, sendo três involuntárias, com o pedido da família, e sete voluntárias. Estes números superam os registrados nos dois primeiros dias, quando foram contabilizadas sete internações, sendo que todas foram voluntárias.
Dartiu Xavier explica por que é contra internação compulsória (Foto: Divulgação)
Mas qual será a eficácia de um tratamento contra a vontade do paciente? Será que o Estado está preparado para receber estes pacientes? Como a internação compulsória é vista em outros países?
O psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Proad (Programa de Orientação e Assistência a Dependentes), onde trabalha com dependentes químicos há 25 anos, explica essas questões. Leia a entrevista a seguir.
SPressoSP – Qual é a sua opinião sobre a medida de internação compulsória que está sendo aplicada em São Paulo?
Dartiu Xavier - Essas medidas são muito inadequadas. Do ponto de vista médico, a gente só aplica a internação involuntária em uma minoria de casos, casos de exceção. Menos de 10% dos dependentes químicos necessitam de internação involuntária. Estes casos são quando o indivíduo, além da dependência, possui um quadro de doença mental grave, como psicose, ou seja suicida. Tirando essas situações, não se justifica a internação.
A internação é menos efetiva que o tratamento ambulatorial. No tratamento internado, é relativamente fácil manter o indivíduo longe das drogas, o difícil é mantê-lo longe das drogas quando ele está enfrentando a vida dele, os problemas, as dificuldades. É aí que ele recai. A maioria recai após a internação. Os estudos variam, mas a taxa de sucesso é sempre inferior a 10%.
SPressoSP - Em quais outros momentos, a internação compulsória foi aplicada no Brasil?
Dartiu Xavier - Durante muito tempo, antes da luta antimanicomial, fazia-se muito isso com pessoas com problemas mentais. Depois mudou muito essa visão, no mundo inteiro, a partir do psiquiatra italiano Franco Basaglia. Ele mostrou que a internação era uma medida de isolamento, um sistema pouco eficaz e levava as pessoas a ficarem cada vez mais crônicas. Não favorecia a reintegração.
Hoje em dia é consenso, no mundo inteiro, que internação psiquiátrica é para um número muito pequeno de casos. Dependência química menos ainda. Deveria ser menos usada.
SPressoSP – Se compararmos a eficácia de tratamentos voluntários e involuntários, qual dos dois tem maior chance de ser bem-sucedido?
Dartiu Xavier - Muda muito. Melhora muito se a pessoa for internada por vontade própria. Na verdade, a pessoa que está aceitando ser internada está em uma situação específica onde ela tem toda uma programação de tratamento, onde uma das etapas é a internação. Se você considerar a internação como a única etapa, ela não vai funcionar.
O grande desafio é quando termina a internação. A finalidade da internação é apenas a desintoxicação. Para isso, você consegue fazer internações curtas, de 15 dias. Não é isso que as pessoas propõem. As pessoas propõem internações de meses. Existem pessoas que passam anos internadas. Isso não faz sentido do ponto de vista médico.
SPressoSP – O senhor acredita que a avaliação para a internação pode ser feita da forma rápida, como está sendo proposta em São Paulo?
Dartiu Xavier – Não dá para avaliar de uma forma rápida. É um processo lento e complexo. Você só consegue avaliar rapidamente se o indivíduo está em situação de psicose, vendo coisas que não existem. Tirando esta situação, não tem cabimento.
Usuários de crack são levados por membros da Missão Belém, instituição conveniada com o governo de São Paulo (Foto: Marcelo Camargo/ABr)
SPressoSP - Houve um caso de um paciente que foi dopado pela filha para ser internado compulsoriamente. Como o senhor avalia esta atitude? Ela acarreta riscos para a própria saúde do paciente?
Dartiu Xavier - Não é uma coisa que recomendamos que seja feita. De forma alguma.
Inclusive, eu tive pacientes que foram internados compulsoriamente e depois conseguiram fugir da clínica onde foram internados. Aí eles procuraram advogados e moveram ações contra as clínicas, alegando cárcere privado.
SPressoSP - Qual a porcentagem dos usuários de crack que se tornam dependentes?
Dartiu Xavier – Os estudos variam, mas em média 40% tornam-se dependentes. O crack só perde para a heroína neste sentido.
SPressoSP - Com a política de internação compulsória, existe o risco de pessoas que não são necessariamente dependentes do crack, serem internadas?
Dartiu Xavier - Acho que isso vai ser a regra. Só a presença do crack já faz com que a pessoa seja vista como alguém que precisa ser internada, quando isso não é verdade.
A gente vê as pessoas que propõem a internação compulsória utilizando uma linguagem que já denota o que elas pensam, um erro médico. Falam assim: “O tratamento do usuário de crack”. O usuário não precisa de tratamento, ele é usuário e não dependente. É um contrassenso, seria a mesma coisa de propor tratamento para o usuário de álcool.
SPressoSP - Existe realmente a proclamada “epidemia do crack” no Brasil?
Dartiu Xavier - Não é cientificamente correto chamar de epidemia. Epidemia é quando você tem um aumento numérico comprovado. Mas nós não temos números confiáveis. Como falar que aumentou se ninguém mediu.
Temos indícios indiretos de que possa estar aumentando. Mas, por exemplo, no meu serviço, que é o Proad, onde atendemos gratuitamente 700 dependentes por mês há 25 anos, eu tenho esse problema do crack desde 1993, não vi um aumento na procura. Se for olhar o meu serviço, eu não vi aumentar o problema que a gente sempre teve.
Claro que existem outros fatores, a ida do crack para outras cidades, para o interior, isso é um fenômeno mais novo. Pode ser um indício de que o problema está aumentando, mas não podemos garantir que existe uma epidemia.
SPressoSP - O sistema de saúde está preparado para receber estas pessoas?
Dartiu Xavier – De forma nenhuma. O sistema de saúde não tem pernas para receber estas pessoas. Não tem pernas nem para realizar um tratamento ambulatorial, que seria mais indicado, mais eficaz e muito mais barato. Agora, vai propor uma internação, que é mais cara, menos eficaz e muito mais complexa. Isso não tem sentido.
Não havendo esse aparelhamento do Estado, o que vai acontecer é que o Estado vai terceirizar isso para a rede privada. O que se diz, que eu não sei se é verdade, é que os grandes lobistas da internação compulsória são os psiquiatras donos de hospitais particulares.
SPressoSP - A internação compulsória em São Paulo pode ser vista como uma medida higienista?
Dartiu Xavier - Isso pode ser verdadeiro, afinal, a visibilidade do uso de crack é escancarada por ser feita pela população de rua, que incomoda muito.
Agora, por uma questão de coerência, se eu propor uma ação de internação compulsória para essas pessoas, tenho que propor também para a classe média e alta, tenho que propor internação compulsória nos Jardins e na Av.Paulista. Se é pra cuidar, por que só vai cuidar da população de rua?
Na verdade não é para cuidar, é porque essa população incomoda.
SPressoSP - Qual a razão da mesma vontade política para implantação da internação compulsória, não ter sido aplicada no fortalecimentos de unidades ambulatoriais e atendimento social dos dependentes de crack?
Dartiu Xavier – Realmente não existe vontade política neste sentido. O que seria algo muito mais barato. Talvez porque não seja tão midiático, não tenha politicamente tanto impacto quanto uma internação compulsória.
SPressoSP – Qual a posição do Brasil, em relação a outros países, no tratamento de doentes mentais e dependentes químicos? O Brasil ainda mantém o modelo manicomial?
Dartiu Xavier – Existiu todo um avanço nesta questão manicomial no Brasil se compararmos com décadas atrás. Mas, na área de drogas, o Brasil ainda é muito atrasado. Essas propostas de internação compulsória seriam inaceitáveis em países de primeiro mundo. É uma afronta a liberdade individual e a cidadania.
Como um indivíduo vai ficar privado da sua vontade, do seu direito de ir e vir, por ser um usuário de droga. Isso causaria uma comoção em toda população em países europeus.
SPressoSP - Por que esta comoção não aconteceu no Brasil? Pelo contrário, por que uma parcela grande da população apoia este tipo de medida?
Dartiu Xavier - O Brasil é um país que ainda precisa amadurecer muito nessa área dos direitos humanos, ainda é truculento. Temos muitas cicatrizes da ditadura, quando era comum esse tipo de violação aos direitos humanos.
Depois, essa população que é alvo dessas ações é uma população miserável, que incomoda muito. São excluídos sociais, abandonados pelo Estado, pessoas que não têm voz e nem ninguém para lutar por eles.
Acho que se começassem a fazer isso com pessoas de outras classes sociais, as pessoas ficariam incomodadas.

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