Luis Fernando Tófoli
A
visão do ‘Bom Dia Brasil’ da TV Globo sobre crack, álcool e outras drogas
ocultaria interesses políticos que só beneficiam um dos lados da questão?
por
Luis Fernando Tófoli — publicado 16/07/2013
17:09
Após
assistir à edição do noticiário Bom Dia Brasil deste 15 de julho de 2013,
resolvi elaborar um teste de conhecimentos sobre drogas, baseando-me em uma
rápida matéria. Vejamos como o leitor se sai nos seus conhecimentos sobre este
tema:
Dentre
as opções que se seguem, qual é a única correta para substituir,
respectivamente, os termos [entidade religiosa] e [droga]?
“A
[entidade religiosa] está recebendo uma enorme quantidade de [droga] para seus
rituais festivos desta semana”.a)
‘Igreja do Santo Daime’ e ‘ayahuasca’;b)
‘igreja rastafariana Primeira Niubingui Coptic de Sião do Brasil’ e
‘maconha’;c)
‘Igreja Nativa Americana’ e ‘peiote’;d)
‘Igreja Bolivariana da Santa Coca’ e ‘crack’;e)
‘Igreja Católica Apostólica Romana’ e ‘vinho’.
Imagino que não tenha sido difícil perceber que a
resposta correta é o item ‘E’. Ainda, a título de informação, vale acrescentar
que a única fictícia dentre as igrejas citadas é a Bolivariana da Santa Coca.
Todas as demais são reais e reclamam o uso sacramental de suas respectivas
drogas, embora somente os rastafáris não estejam respaldados
legalmente.
Conforme
noticia o Bom Dia Brasil, é a Igreja Católica que terá à sua disposição mil
garrafas de vinho gaúcho de safra 2007, para uso na Jornada Mundial da
Juventude, no Rio de Janeiro. Entretanto, o que interessa abordar aqui nem é a
leveza com se noticia a fartura da distribuição do álcool, droga lícita. Na
mesma edição do noticiário global há uma longa matéria sobre o crack – outra
droga, só que ilegal. Trata-se da primeira de uma série que será exibida ao
longo da semana. Pelo que se pode avaliar pela amostra inicial, aqui também será
seguido o padrão geral da imprensa televisiva brasileira que adormece a reflexão
crítica sobre o assunto.
A
reportagem é uma coleção de meias-verdades que, unidas, engendram uma visão
tendenciosa. Cita-se a repressão policialesca como fator essencial para a
redução de redução do uso de crack em Nova York, mas não se comenta que o
aumento da repressão não foi capaz de resolver o intenso problema do crack em
outra região americana, a de Nova Orleans. Alude-se que o ‘problema’ desta droga
seria a ‘facilidade’ com que os usuários têm acesso a ela, mas não se pontua que
a estratégia de restrição de oferta por aumento de penas por tráfico (que
acontece desde 2006 em nosso país) não foi capaz de impedir a ampliação do
comércio, não teve impacto no preço da droga e fez crescer o encarceramento de
réus primários, que quando pobres e negros têm maior tendência a serem presos
como traficantes do que como usuários.
Apesar
das palavras cuidadosas da coordenadora de Álcool e Drogas da Secretaria do
Estado da Saúde de São Paulo, Rosângela Elias, a tônica da matéria resume-se nas
palavras atribuídas ao psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, deixando
transparecer o recurso da internação como ‘fundamental’. Os repórteres não saem
da comodidade do senso comum para colocar em perspectiva o impacto econômico e
sanitário das diversas formas de tratamento, que vão muito além da
internação.
Ainda,
o âncora do jornal menciona a ‘alta dependência de crack’, mas não se aborda a
dramática necessidade da quantificação exata de dependentes em relação à
população geral. A recente pesquisa da UNIFESP que indica um número alto de
usuários no Brasil não traz com clareza quantos são, efetivamente, os
dependentes e deixa escapar o fato de que a maioria dos usuários, por mais
surpreendente do que isso possa parecer, não apresentam dependência. Além disso,
ouve-se dos bastidores de outra pesquisa, feita pela Escola Nacional de Saúde
Pública com financiamento da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas
(SENAD), que seus resultados provavelmente indicarão um número muito menor de
usuários de crack nas ruas das grandes cidades é do que é esperado pelo
imaginário popular. Estes dados, infelizmente, estão aguardando divulgação por
parte da SENAD.
O
que mais me chama a atenção, no geral, é a completa inexistência de qualquer
reflexão sobre os importantíssimos determinantes sociais do uso problemático de
drogas. A substância, na visão simplista da maior emissora televisiva nacional,
é sistematicamente julgada e condenada, a priori, como culpada. Dessa forma
torna-se, para o telespectador da Rede Globo, desnecessário meditar sobre a
complexidade real do tema, que é muito maior do que parece à primeira vista... E
isso é particularmente perigoso para a já vulnerável e rejeitada população que
usa crack nas ruas, uma vez que não se pode prender ou internar substâncias: são
pessoas que são enviadas para o sistema carcerário e para clínicas de tratamento
religioso financiadas pelo Estado laico.
Resumindo,
é vasta a quantidade de perspectivas distorcidas encontradas nesta matéria, sem
discussão, sem contraposição, sem a opinião de personalidades que tenham visões
diversas das que são apresentadas. E o contraste com o tratamento dado pela
televisão ao álcool – substância cujo uso é mais grave para a saúde pública e a
segurança, e para a qual ainda há espaço na propaganda televisiva e em matérias
leves sobre o ‘vinho do Papa’ – torna essas distorções ainda mais gritantes.
Não
deixa de ser interessante considerar que, há muito pouco tempo, Renan Calheiros
tenha colocado em regime de urgência no Senado o anacrônico projeto de lei que
modifica a lei de drogas (nomeado agora como PLC 37/2013). Foi impossível, para
mim, deixar de notar que a reportagem reforça quase todos os artigos do projeto
de lei, mesmo que eles tenham sido rejeitados por instâncias governamentais,
civis e internacionais. No entanto, o projeto foi aprovado na Câmara e é
sancionado pela visão caolha das drogas que é distribuída à população em doses
mais generosas do que o apoio financeiro da AMBEV à candidatura de diversos
congressistas eleitos.
Resta
ao jornalismo verdadeiramente independente investigar se isso é só uma ‘noia’
minha, ou se onde há a fumaça de crack na grande mídia, haja também o fogo da
política acendendo os cachimbos que obnubilam a consciência do País.
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Luis
Fernando Tófoli é psiquiatra e professor da Faculdade de Ciências Médicas da
UNICAMP.
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Luís Fernando Tófoli
Luís Fernando Tófoli
Departamento de Psicologia Médica e
Psiquiatria / Department of Medical Psychology and Psychiatry
UNICAMP (Universidade Estadual de
Campinas / State University of Campinas)
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