quarta-feira, 18 de setembro de 2013

ESTADO LAICO, RELIGIÃO E O PROBLEMA DA ATENÇÃO AOS USUÁRIOS DE DROGAS


ESTADO LAICO, RELIGIÃO E O PROBLEMA DA ATENÇÃO AOS USUÁRIOS DE DROGAS1



Arnor Trindade2


Durante muito tempo a questão do uso de drogas no país foi principalmente um problema de justiça. Embora os impactos na saude pública fossem evidentes, somente após 2003, com a publicação pelo MS da Política de Atenção Integral a Usuários Álcool e Outras Drogas é que, oficialmente, o governo federal propôs encarar de frente o problema de drogas no campo da saúde. Até então, em geral, os casos de intoxicação e sindromes de abstinência eram tratados nas urgências e os pacientes liberados, sem que houvesse sequencia no tratamento. Aqueles que prosseguiam tentando se tratar, o faziam basicamente a partir de dois dispositivos, desvinculados do campo da saúde: os grupos de mútua ajuda e as comunidades terapeuticas.3

O termo “comunidade terapêutica” foi cunhado pelo psiquiatra escocês Maxwell Jones, no pós-guerra, o que ele chamaria a 3º Revolução na Psiquiatria. A invenção consistia em um espaço de convivência onde pessoas acometidas por problemas comuns pudessem, no compartilhamento das atividades cotidianas, lidar com problemas como a depressão e a dependência de drogas. Iniciativas semelhantes surgiram em outros países, com destaque para o movimento Synanon, surgido em 1959, nos EUA, a partir das experiências dos grupos de autoajuda.

No Brasil, estes dispositivos surgiram e proliferaram sobretudo a partir da organização de grupos religiosos, incorporando os valores das religiões que se propunham a tal prática. Assim, perderam parte da sua formulação original.Tais grupos vinham trabalhando praticamente sem nenhum tipo de intervenção governamental, sem estrutura adequada, sem metodologia definida4 e sobretudo sem nenhuma fiscalização. No vácuo das políticas públicas neste campo, elas se fortaleceram, tanto financeiramente como politicamente. Se estruturaram como instituições asilares, com regras e disciplinas rígidas, com clara função de catequizante, situadas normalmente em locais de difícil acesso, com o foco voltado para a abstinência e a penitência.

Estas entidades, de cunho privado, aos poucos foram conseguindo, em alguns casos, financiamento público para suas atividades, embora não sejam filantrópicas, na medida em que cobram pelo seu “tratamento”. Verificaram que cuidar de “drogados” era, não apenas interessante, do ponto de vista da catequização de novos fiéis, mas também um bom marketing para as igrejas e uma atividade muito lucrativa: em suma, um ótimo negócio.

De fato, poucos negócios são tão lucrativos e com tão baixo investimento. Em termos gerais, e é o que temos visto, para montar uma CT basta ter um espaço (um sítio qualquer, uma fazenda, em geral um terreno afastado das áreas urbanas) coloca-se os internos para trabalhar (sem despesa com funcionários), conseguem doações e verbas públicas. Não precisam contratar profissionais, são isentas de imposto e, em geral, de fiscalização5. Há várias histórias de usuários que dizem ter ajudado a construir as sedes das comunidades terapêuticas onde passaram. Algumas dessas instituições comercializam produtos que resultam do trabalho dos internos, outras ainda colocam os internos para realizar algum tipo de venda externa ou coleta de doações. Além disso, recebem boas quantias das famílias desesperadas.

Por outro lado, e concomitantemente ao crescimento das CTs, observou-se número crescente de religiosos, principalmente pastores evangélicos, como parlamentares. Líderes religiosos que começaram sistematicamente a utilizar da sua proeminência religiosa para influenciar seus fiéis em seus votos nas eleições em todos os níveis. Estes parlamentares, eleitos em geral pelos votos dos frequentadores dessas igrejas, começaram a tentar trazer para o campo das políticas públicas os valores de suas religiões.

Em 2003, no entanto,é lançada “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas”.É preciso destacar que a política do MS tem duas características principais, marcantes: a primeira é que a política de drogas se estrutura no campo da Saúde Mental, que tem como marca no Brasil ser antimanicomial. A segunda é que ela estabelece como paradigma a redução de danos. Tais concepções ferem diretamente o que, para as CTs no Brasil, é o mais caro: a internação por longo período, e o ideal de abstinência, a abstinência como a única possibilidade a ser alcançada. Esta postura distinta, radicalmente diferente em relação às CTs, logo gerou impasses e conflitos no campo das políticas de atenção ao usuário de drogas.

Com a entrada da saúde neste campo, os líderes deste negócio altamente lucrativo perceberam que estavam ameaçados, tanto nos seus princípios como na sua influência, na sua capacidade de angariar recursos públicos. Com o empoderamento dos novos pastores, estes passaram a se posicionar claramente contra a política da saúde. É importante ressaltar que boa parte dos políticos que neste campo fazem a defesa deste modelo de atenção são eles mesmos donos de CTs6. A disputa engrossou no campo político e ideológico. Diante da ameaça representada pela assunção da política pública, a crescente bancada religiosa no congresso se articulou a outros grupos em torno da simplória proposta para a solução do abuso e dependência de drogas e encontrou eco nos anseios do senso comum, sobretudo devido, mais recentemente, à presença de usuários de crack na cena pública. Não demorou que a estes grupos fizesse coro a mídia alarmista: internar virou o imperativo, forma de banir esses “zumbis” do espaço urbano, apelo pelo higienismo e afastamento da diferença, do que ainda não foi bem entendido.

Este panorama político ideológico repercute diretamente nas práticas de atenção. Se de um lado temos o tema das drogas ainda como tabu, uma rede de saúde ainda insuficiente ou despreparada para enfrentar os problemas de saúde ligado ao uso abusivo de drogas, a criminalização de várias práticas relacionadas aos usos de drogas, fomentando o tráfico e a violência, de outro temos os grandes órgãos da imprensa e do entretenimento, formadores de opinião neste país que pouco lê, que trabalham a partir de dicotomias simples, colocando as questões contemporâneas com afirmações maniqueístas e totalitárias, mais ao gosto da população acrítica. Órgãos estes que, com seus interesses políticos e comerciais, ampliam o coro e o afã moralista e religioso: a droga é o demônio, o usuário um possuído. Logo, resposta está na religião, na internação, no banimento.Toda a complexidade da questão é então obscurecida por esta equação simplória

Diante da organização e do poder político e econômico destes grupos, do apelo midiático favorável e, em consequência, do apelo popular pelo fim das drogas, o MS abriu precedentes para a inclusão das CTs instituições afins nas redes de atenção. Em portarias recentes7, ele acaba por assentir a parceria com estes dispositivos, o que traz sérias repercussões para as práticas em saúde neste campo, sobretudo por definir estes serviços enquanto serviços de saúde e a eles destinar recursos públicos. Oficializa-se assim uma parceria torta.

Cabe lembrar que alguns governos, municipais e estaduais, já vinham sistematicamente financiando as Comunidades Terapêuticas. O Governo de Minas, com a sua subsecretaria antidrogas, vem fazendo repasses sistemáticos para essas instituições (Ex: papo legal, bolsa crack, aliança território). Aliás, toda essa secretaria é montada a partir dos princípios das CTs. Entre seus componentes, muitos são oriundos dos setores religiosos e ligados às CTs.

Não que se pudesse ignorá-las, pelo papel que elas desempenharam na sociedade quando não havia outros recursos ou iniciativas, enquanto as políticas públicas passavam ao largo nesta questão. O que nos parece inaceitável financiar com dinheiro público, ainda mais com dinheiro da saúde instituições que trabalham com princípios tão diversos, sem sustentação científica ou resultados mensurados das suas práticas. É no mínimo, um contrassenso. Como nos ensina o sábio adágio religioso:” a César o que é de César” ou ainda este outro; “não dá pra servir a dois senhores”.

Com dinheiro, poder político, penetração na mídia e falando em nome de Deus, estes grupos se tornam então bastante influentes, intervindo fortemente nas políticas públicas, interferindo na construção e execução das leis, na estruturação das redes de assistência e proteção, na distribuição de recursos públicos que, neste campo, são distribuídos em generosas doses aos donos de comunidades terapêuticas.

Transformado neste contexto o em grande mal para a sociedade, o usuário de drogas é então um ente do mal, porque também não tem uma materialidade clara, ser fantasmático que povoa nossos pesadelos, aquele que é capaz de matar, roubar, estuprar para obter as drogas, este objeto maligno que, no imaginário popular se torna a própria encarnação do mal.

Assim, a procissão de ódio e desconhecimento ganha força e impacta diretamente os serviços de atenção ao usuário de drogas. Até mesmo entre os profissionais de saúde a tentação da crença no milagre religioso como a única saída para o uso de drogas prevalece. Em levantamento com profissionais do SUS que trabalham na região Norte de Belo Horizonte, realizado pelo PET saúde mental da PUC MG8, constatou-se que boa parte deles acreditam na cura religiosa. Dentre estes mesmos profissionais, cerca de 70% não sabem o que vem a ser redução de danos, o paradigma que deveria orientar suas práticas de atenção.

E como atuam as comunidades terapêuticas de cunho religioso? Ora, se o uso de droga é algo criminoso, o usuário deve então ser tratado como criminoso, pagando pelos seus crimes. Se é pecado, ele deve expiá-lo. Em vez de atenção e cuidado, grades e trabalho forçado. No lugar de intervenções médicas e psicoterápicas, exorcismos e exortações, sermões e pregações, no lugar de acolhimento e escuta, disciplina religiosa e orações. Pois não se trata de cuidar de pessoas, de oferecer cuidados de saúde, mas de enfrentar o próprio demônio.

No arroubo de poder e desvario, já não cabe a humildade cristã: como apregoa um tele-pastor: “venha ter a felicidade plena”, e logo em seguida oferece seus produtos. Em sintonia com a economia de mercado, o que estes “religiosos” fazem nada mais é do que repetir a toada do marketing capitalista: consuma e seja feliz. Só que aqui, não cabem sutilezas, a mensagem é direta, a felicidade absoluta é ofertada mediante ao consumo de certos produtos, certos comportamentos, mas também em condenação dos outros que não estão de acordo com o código rígido e restritivo dos comportamentos prescritos por determinados grupos religiosos.

Numa dicotomia simples, num maniqueísmo absoluto, não há espaço para a relativização, para a perspectiva. Embaça-se assim o espaço para o diálogo. O termo é extremo e absoluto: ou se é de Deus ou se serve ao Demônio. Não há espaço para o humano. Solapa-se assim qualquer humanismo, fundante e necessário uma sociedade democrática. Neste contexto, onde a divindade se funde com o próprio capitalismo, caminha-se para uma teocracia de mercado. Ora, num regime teocrático, não há espaço para liberdade. Nem mesmo para a liberdade de se ter religião.

REFERÊNCIAS:

 BRASIL, Ministério Da Saúde: A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas/ Ministério da Saúde 2.ed, Brasília, 2006

 BRASIL, Ministério Da Saúde: Álcool e redução de danos: uma abordagem inovadora para países em transição. Brasília, 2004

BRASIL, Casa Civil, Presidência da República: Lei 11.343, De 23 De Agosto De 2006

DE LEON, George. A Comunidade Terapêutica: Teoria, Modelo e Método. Ed. Loyola, 2003;

1 Texto apresentado no I Encontro Nacional da RAPS, em Pinhais, PR, em 05/12/2013. Já havia sido apresentado, no IV Seminário Psicologia Social em Ação: Intervenção Social e Estado Laico, em 9 setembro de 2013, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, Belo Horizonte, MG.

2Psicólogo, trabalhador da Rede de Saúde Mental de Belo Horizonte, MG.

3É importante lembrar que, embora exceção, alguns serviços públicos especializados como CMT (MG) e CETAD (BA), vinham atendendo esta clientela.

4Muito embora existam certos parâmetros gerais que definem uma certa metodologia, ainda que precária, para as comunidades terapêuticas, verifica-se que nas instituições em funcionamento no Brasil há uma grande variedade de práticas. Talvez o que se possa destacar de comum a todas elas é a ênfase na reclusão, no trabalho enquanto expiação e na religiosidade.Em levantamento feito pela Subsecretaria Antidrogas, em 2009, com 123 entidades que se autodenominam comunidades terapêuticas em Minas Gerais, observou-se um grande número de irregularidades, como pessoas que não tinham dependência de drogas internadas, pessoas com quadros psiquiátricos graves e outras patologias sem nenhuma assistência em saúde. Algumas instituições até retiravam os medicamentos que os internos faziam uso. Dessas instituições, a maioria não tinha uma equipe técnica mínima, reduzindo toda a sua “assistência” a trabalho (laborterapia?) e orações.

5Quando vistoriada pela Vigilância Sanitária e, estando funcionando de forma ilegal ou apresentando irregularidades, é comum que elas realizem a mudança de endereço, às vezes indo para outros municípios.

6Vale citar aqui o protagonismo do deputado Tinhorão, um dos principais signatários das mudanças propostas no congresso para a atual lei sobre drogas. Entre as alterações na lei, está a sistematização do financiamento público de Comunidades Terapêuticas.

7A portaria 131, de janeiro de 2012 institui incentivos financeiros para que as CTs funcionem como “Serviços de atenção em regime residencial”.

8PET Saúde Mental- Crack Álccol e Outras Drogas – PUC MINAS: Pesquisa quntitativa e qualitativa realizada em 2010-2011 com profissionais do SUS da região Norte de Belo Horizonte. Trabalho ainda não publicado.

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