quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Política sobre Drogas em BH


Entrevista- Arnor Trindade para Jornal do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte- MG, edição 46.

 

Na sua opinião, estamos de fato vivendo uma epidemia de crack?
Bem, é importante lembrar que para estabelecer a ocorrência de uma epidemia devemos levar em consideração alguns fatores como doença, agente patógeno, número de casos e período de tempo. Caracterizamos por epidemia o surgimento de um número muito grande de casos num curto período de tempo. Com relação ao uso de crack, não existe um agente patógeno, uma vez que o crack em si não é causador da dependência. Embora os levantamentos mais confiáveis sobre o uso de drogas, inclusive o crack, apontem para um aumento do uso desta droga ( CEBRID , LENAD , FIOCRUZ), nenhum destes levantamentos permite estabelecer um aumento expressivo do uso em curto período de tempo, pois embora realizados em momentos diferentes, não é possível uma comparação direta entre seus dados, uma vez que utilizam amostragens e metodologias distintas. Por outro lado, não podemos considerar o uso do crack em si uma doença, uma vez que é preciso alguns critérios diagnósticos para se estabelecer o uso patológico. Fala-se hoje de uma epidemia de crack muito mais em função da comoção social provocada pela cobertura da mídia em relação aos usuários de crack, sobretudo os que fazem uso em cena pública. Então, não é correto afirmar, do ponto de vista epidemiológico, baseado em dados científicos, que existe uma epidemia de crack. Isto não quer dizer que não tenhamos um grande problema social e de saúde ligado ao consumo e comércio desta substãncia, mas que nem de longe é a droga que causa maiores problemas na nossa sociedade.

 

Como se estrutura a rede de saúde de Belo Horizonte para atendimento às pessoas com problemas relativos ao uso de drogas?
Como dispositivos voltados mais diretamente para atendimento a usuários de drogas, Belo Horizonte conta atualmente com 3 CAPS ad (CERSAM AD Pampulha, Nordeste e Barreiro) que são serviços municipais, além do CMT, que é um serviço da FHEMIG. Contamos com quatro equipes de Consultório de Rua. Além disso, os usuários são atendidos em diferentes níveis da rede de atenção, que vai da atenção primária à urgência (UBS, UPAS, SAMU, CERSAM, etc), passando por serviços secundários e especializados. Isto quer dizer que toda a rede de saúde deve atender pessoas com problemas relativos ao uso de drogas.

 

O que precisa melhorar?
É preciso ampliar e qualificar a rede de atenção: ampliar o número de serviços específicos, criar novos dispositivos (UA, PAD), já previstos na política e qualificar e instrumentalizar os demais dispositivos da rede para prestar atendimento adequado, humanizado e eficiente voltado para os sofrimentos causados pelo uso de drogas.

 

Quais as estratégias utilizadas nesses serviços?
Os dispositivos da saúde trabalham, ou deveriam trabalhar, com a perspectiva da redução de danos, que é o paradigma da política do SUS para a atenção aos usuários de drogas. Isto significa dizer, em termos gerais, que eles abordam o sofrimento decorrente do uso de drogas, que pode trazer consequencias físicas, psíquicas e sociais. O usuário tem o direito ao tratamento, queira ele ou não cessar o uso das drogas. Evidentemente, cada um dos dispositivos da saúde tem sua especificidade. O Consultório de Rua, por exemplo, aborda a pessoa na cena de uso; o CERSAM AD recebe pessoas encaminhadas ou por demanda espontânea para tratamento, as UPAs recebem o usuário em crise de abstinência ou intoxicação graves, os Centro de Convivência para a participação em oficinas de arte e cultura, etc.

 

E a rede intersetorial? Como tem sido feito esse diálogo e trabalho conjuntos, principalmente quando se fala da população em situação de rua?
Os serviços de saúde têm feito boas parcerias com os dispositivos da Assistência Social, como as equipes de abordagem às pessoas em situação de rua. É preciso, no entanto, caminharmos para uma parceria mais efetiva, institucional, com definição de protocolos em comum, com uma maior sintonia das políticas destes campos. Temos uma grande dificuldade de vagas para abrigamento noturno. Com outros setores como cultura, educação, etc, temos ainda pouca interlocução. Penso que o setor Educação é estratégico para pensarmos a prevenção.

 

O projeto de lei 7663/10 de autoria do Deputado Osmar Terra agora já está em trâmite no Senado (PL 37/13) e visa assegurar as internações forçadas, dentre outras questões. O que você pensa a respeito?
Este projeto equivocado, se for aprovado no Senado e implementado, representará um grande retrocesso. Entre outos motivos, posso citar a confusão ao estabelecer como drogas “as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência”. Ora, nesta definição, extremamente ampla, podem incluir substâncias, como a cafeína, a nicotina ou a sacarose, a produtos, como chocolates, celulares e computadores, todos eles sujeitos a “causar” dependência. Assim, a partir de uma definição equivocada de droga, segue-se uma indeterminação do termo usuário. Deixa a entender que todo “usuário”, de qualquer “droga” precisa ser “tratado”, uma vez que desaprova qualquer uso de droga, “mesmo que ocasional”, o que mostra o seu caráter eminentemente moralista.
O projeto, aliás, parece uma colcha de retalhos, propondo recomendações para saúde e educação em temas tão distintos como DST, uso de drogas e planejamento familiar, indicando a parceria com instituições religiosas para abordar estas questões. Há uma clara ênfase na repressão, com maior criminalização do usuário. Ele não faz nenhuma referência à redução de danos e propôe a internação como recurso universal de tratamento. Prevê, além disso, o repasse de recursos públicos para entidades privadas mediante decisão judicial. Resumindo, é um projeto sem embasamento científico, moralista e anti-ético.

 

Quais aspectos você considera importantes para elaboração de políticas públicas sobre drogas?
Tenho participado de algumas conferências sobre drogas e tenho observado um enfoque muito grande nos casos de dependência, como se a política devesse enfocar apenas este aspecto. O uso de drogas está difundido na cultura, na sociedade. Todo mundo faz uso de drogas, em algum momento, com mais ou menos implicação. Uma política sobre drogas deve ser uma política para todos, deve contemplar desde o cafezinho servido na escola ao diazepam adquirido na farmácia, do thinner usado pelas crianças de rua ao uísque usado pelo executivo. Deve contemplar aspectos da prevenção, envolver a Educação, a Cultura, o Direito, as políticas ambientais. As drogas não se resumem aos seus efeitos químicos, mas estão relacionadas a grupos, a modos de vida, a comportamentos sociais, a subjetividades. Uma política que não pense toda a amplitude do tema é uma política capenga.

 

Em Outubro passado, alguns movimentos sociais e entidades do campo da saúde mental divulgaram a “Carta ao Secretário Municipal de Saúde de Belo Horizonte” em que denunciam o aumento de internações compulsórias em hospitais psiquiátricos e a situação dos Consultórios de Rua implantados através de parcerias com comunidades terapêuticas. Você poderia nos explicar melhor essa situação?  

Na verdade, o queríamos, era garantir que as conquistas históricas do SUS e da Reforma Piquiátrica, da participação popular, dos direitos e cidadania dos usuários, não fossem comprometidos pela intervenção de setores estranhos à ética da saúde pública. Também pontuamos a necessidade da garantia de boas condições de trabalho e da implantação de serviços já previstos em decretos municipais.

Com relação a parcerias com comunidades terapêuticas, considero lamentável. Foi feita sem discussão com os setores dos trabalhadores e usuários. Parcerias são bem vindas, mas não há como fazer parceria com quem atua com princípios tão diversos. Este descompasso logo se evidenciou na prática, com os membros dessas ONGs se recusando a distribuir preservativos, fazendo exorcismos no campo, aliciando usuários para suas internações, só para citar algumas situações. Não podia dar certo, como não deu.

 

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