Entrevista-
Arnor Trindade para Jornal do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte- MG, edição 46.
Bem,
é importante lembrar que para estabelecer a ocorrência de uma
epidemia devemos levar em consideração alguns fatores como doença,
agente patógeno, número de casos e período de tempo.
Caracterizamos por epidemia o surgimento de um número muito grande
de casos num curto período de tempo. Com relação ao uso de crack,
não existe um agente patógeno, uma vez que o crack em si não é
causador da dependência. Embora os levantamentos mais confiáveis
sobre o uso de drogas, inclusive o crack, apontem para um aumento do
uso desta droga ( CEBRID , LENAD , FIOCRUZ), nenhum destes
levantamentos permite estabelecer um aumento expressivo do uso em
curto período de tempo, pois embora realizados em momentos
diferentes, não é possível uma comparação direta entre seus
dados, uma vez que utilizam amostragens e metodologias distintas.
Por outro lado, não podemos considerar o uso do crack em si uma
doença, uma vez que é preciso alguns critérios diagnósticos para
se estabelecer o uso patológico. Fala-se hoje de uma epidemia de
crack muito mais em função da comoção social provocada pela
cobertura da mídia em relação aos usuários de crack, sobretudo
os que fazem uso em cena pública. Então, não é correto afirmar,
do ponto de vista epidemiológico, baseado em dados científicos,
que existe uma epidemia de crack. Isto não quer dizer que não
tenhamos um grande problema social e de saúde ligado ao consumo e
comércio desta substãncia, mas que nem de longe é a droga que
causa maiores problemas na nossa sociedade.
Como
se estrutura a rede de saúde de Belo Horizonte para atendimento às
pessoas com problemas relativos ao uso de drogas?
Como
dispositivos voltados mais diretamente para atendimento a usuários
de drogas, Belo Horizonte conta atualmente com 3 CAPS ad (CERSAM AD
Pampulha, Nordeste e Barreiro) que são serviços municipais, além
do CMT, que é um serviço da FHEMIG. Contamos com quatro equipes de
Consultório de Rua. Além disso, os usuários são atendidos em
diferentes níveis da rede de atenção, que vai da atenção
primária à urgência (UBS, UPAS, SAMU, CERSAM, etc), passando por
serviços secundários e especializados. Isto quer dizer que toda a
rede de saúde deve atender pessoas com problemas relativos ao uso
de drogas.
É
preciso ampliar e qualificar a rede de atenção: ampliar o número
de serviços específicos, criar novos dispositivos (UA, PAD), já
previstos na política e qualificar e instrumentalizar os demais
dispositivos da rede para prestar atendimento adequado, humanizado e
eficiente voltado para os sofrimentos causados pelo uso de drogas.
Os
dispositivos da saúde trabalham, ou deveriam trabalhar, com a
perspectiva da redução de danos, que é o paradigma da política
do SUS para a atenção aos usuários de drogas. Isto significa
dizer, em termos gerais, que eles abordam o sofrimento decorrente do
uso de drogas, que pode trazer consequencias físicas, psíquicas e
sociais. O usuário tem o direito ao tratamento, queira ele ou não
cessar o uso das drogas. Evidentemente, cada um dos dispositivos da
saúde tem sua especificidade. O Consultório de Rua, por exemplo,
aborda a pessoa na cena de uso; o CERSAM AD recebe pessoas
encaminhadas ou por demanda espontânea para tratamento, as UPAs
recebem o usuário em crise de abstinência ou intoxicação graves,
os Centro de Convivência para a participação em oficinas de arte
e cultura, etc.
E
a rede intersetorial? Como tem sido feito esse diálogo e trabalho
conjuntos, principalmente quando se fala da população em situação
de rua?
Os
serviços de saúde têm feito boas parcerias com os dispositivos da
Assistência Social, como as equipes de abordagem às pessoas em
situação de rua. É preciso, no entanto, caminharmos para uma
parceria mais efetiva, institucional, com definição de protocolos
em comum, com uma maior sintonia das políticas destes campos. Temos
uma grande dificuldade de vagas para abrigamento noturno. Com outros
setores como cultura, educação, etc, temos ainda pouca
interlocução. Penso que o setor Educação é estratégico para
pensarmos a prevenção.
O
projeto de lei 7663/10 de autoria do Deputado Osmar Terra agora já
está em trâmite no Senado (PL 37/13) e visa assegurar as
internações forçadas, dentre outras questões. O que você pensa
a respeito?
Este
projeto equivocado, se for aprovado no Senado e implementado,
representará um grande retrocesso. Entre outos motivos, posso citar
a confusão ao estabelecer como drogas “as substâncias ou os
produtos capazes de causar dependência”. Ora, nesta definição,
extremamente ampla, podem incluir substâncias, como a cafeína, a
nicotina ou a sacarose, a produtos, como chocolates, celulares e
computadores, todos eles sujeitos a “causar” dependência.
Assim, a partir de uma definição equivocada de droga, segue-se uma
indeterminação do termo usuário. Deixa a entender que todo
“usuário”, de qualquer “droga” precisa ser “tratado”,
uma vez que desaprova qualquer uso de droga, “mesmo que
ocasional”, o que mostra o seu caráter eminentemente moralista.
O
projeto, aliás, parece uma colcha de retalhos, propondo
recomendações para saúde e educação em temas tão distintos
como DST, uso de drogas e planejamento familiar, indicando a
parceria com instituições religiosas para abordar estas questões.
Há uma clara ênfase na repressão, com maior criminalização do
usuário. Ele não faz nenhuma referência à redução de danos e
propôe a internação como recurso universal de tratamento. Prevê,
além disso, o repasse de recursos públicos para entidades
privadas mediante decisão judicial. Resumindo, é um projeto sem
embasamento científico, moralista e anti-ético.
Quais
aspectos você considera importantes para elaboração de políticas
públicas sobre drogas?
Tenho
participado de algumas conferências sobre drogas e tenho observado
um enfoque muito grande nos casos de dependência, como se a
política devesse enfocar apenas este aspecto. O uso de drogas está
difundido na cultura, na sociedade. Todo mundo faz uso de drogas, em
algum momento, com mais ou menos implicação. Uma política sobre
drogas deve ser uma política para todos, deve contemplar desde o
cafezinho servido na escola ao diazepam adquirido na farmácia, do
thinner usado pelas crianças de rua ao uísque usado pelo
executivo. Deve contemplar aspectos da prevenção, envolver a
Educação, a Cultura, o Direito, as políticas ambientais. As
drogas não se resumem aos seus efeitos químicos, mas estão
relacionadas a grupos, a modos de vida, a comportamentos sociais, a
subjetividades. Uma política que não pense toda a amplitude do
tema é uma política capenga.
Em
Outubro passado, alguns movimentos sociais e entidades do campo da
saúde mental divulgaram a “Carta ao Secretário Municipal de Saúde
de Belo Horizonte” em que denunciam o aumento de internações
compulsórias em hospitais psiquiátricos e a situação dos
Consultórios de Rua implantados através de parcerias com
comunidades terapêuticas. Você poderia nos explicar melhor essa
situação?
Na
verdade, o queríamos, era garantir que as conquistas históricas do
SUS e da Reforma Piquiátrica, da participação popular, dos
direitos e cidadania dos usuários, não fossem comprometidos pela
intervenção de setores estranhos à ética da saúde pública.
Também pontuamos a necessidade da garantia de boas condições de
trabalho e da implantação de serviços já previstos em decretos
municipais.
Com
relação a parcerias com comunidades terapêuticas, considero
lamentável. Foi feita sem discussão com os setores dos
trabalhadores e usuários. Parcerias são bem vindas, mas não há
como fazer parceria com quem atua com princípios tão diversos. Este
descompasso logo se evidenciou na prática, com os membros dessas
ONGs se recusando a distribuir preservativos, fazendo exorcismos no
campo, aliciando usuários para suas internações, só para citar
algumas situações. Não podia dar certo, como não deu.
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