Crack
can improve the society or the potential of citizenship that lays in
some epidemics
El crack puede mejorar la sociedad o lo potencial de ciudadania que puede estar contenido en algunas epidemias
Autora: Adriana Prates :Cientista Social, atualmente integrando o staff do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD) – vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA) Contato: djadrianaprates@hotmail.com
INTRODUÇÃO
link :http://www.neip.info/index.php/content/view/2469.html
El crack puede mejorar la sociedad o lo potencial de ciudadania que puede estar contenido en algunas epidemias
Resumo:
a autora traça um paralelo entre o advento da da Aids, doença
surgida nos anos oitenta, e o da chamada “epidemia” do crack,
elencando algumas semelhanças e demonstrando o potencial para a
mudança social que estava contido na primeira e que pode também
estar contido na segunda.
Palavras-chave:
AIDS, Crack, mudança
Autora: Adriana Prates :Cientista Social, atualmente integrando o staff do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD) – vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA) Contato: djadrianaprates@hotmail.com
INTRODUÇÃO
Por
ocasião dos dez dias de greve da polícia baiana, ocorrida em
fevereiro de 2012, as mazelas de Salvador foram revolvidas à
exaustão em blogs e redes sociais como twitter e facebook. Neste
momento tenso, confirmei uma antiga impressão, a de que Salvador,
cantada por vários ícones da MPB, teve seu retrato mais preciso
traçado na música “Controle Total”, de autoria de uma banda
surgida na primeira metade da década de 80, que não tocava no rádio
nem aparecia na televisão porque seu nome, “Camisa de Vênus”,
era considerado ofensivo e não podia ser mencionado.
Lembrei
também que, pouco tempo depois (a música é de 84), este pudor
midiático teve de ser revisto, quando o mundo foi surpreendido por
uma doença chamada AIDS, cuja prevenção mais eficaz constituía o
uso de preservativo. A partir de então, a ofensiva camisa de vênus
passou a ser corriqueiramente mencionada pelos veículos midiáticos,
inclusive pelo diminuitivo “camisinha”.
Inicialmente
encarada de maneira fatalista, moralista e preconceituosa, a AIDS
acabou deixando valiosas lições em relação à hipocrisia,
mobilização e cidadania. Penso que o mesmo potencial pode estar
contido na chamada “epidemia do crack” e neste texto me disponho
a discorrer sobre algumas similaridades que observo entre esses dois
fenômenos e sinalizar potecialidades contidas na chamada “epidemia
do crack”.
AIDS:
PECADO E CASTIGO
Surgida
no Brasil no início da década de 80, a AIDS era uma doença grave e
de causas misteriosas, cujas primeiras vítimas foram identificadas
como homossexuais. Segundo João Silvério Trevisan (2002, p.436), a
AIDS foi logo associada à peste, provocando pânico e exacerbando
rancores e preconceitos. Trevisan explica que a AIDS tornou-se ainda
mais assustadora por conta do obscurantismo presente na sociedade
brasileira e em seus líderes políticos e religiosos. Citando Susan
Sontag no famoso ensaio “Doença como metáfora: AIDS e suas
metáforas”, Trevisan diz que por força do mistério que as
envolve, as doenças desconhecidas tendem a provocar interpretações
que são usadas “como metáfora para o que se considera social ou
moralmente errado”. Neste sentido a AIDS foi ideologicamente
associada à homossexualidade, objeto de histórico preconceito,
metaforizando pecado (a sexualidade desviante) e castigo (uma doença
mortal), e assim foi se criando um imaginário em relação à AIDS
em que o doente seria mais culpado do que vítima. Praticamente um
cúmplice da doença.
Na
parte VII do livro Devassos do Paraíso (2002), Trevisan elenca
sugestões absurdas de alguns agentes sociais para sanar a epidemia,
que iam do extermínio ao confinamento de homossexuais.
Representantes dos mais variados setores da sociedade, especialmente
aqueles ligados à medicina e à igreja católica, apontavam os
homossexuais não somente como culpados de adoecerem, mas como
verdadeiras ameaças à sociedade, jogando em seus ombros “uma
responsabilidade absurda, em termos de saúde pública” e trazendo
de volta o naturalismo no discurso médico, que buscava explicar o
fenômeno com base “no argumento da naturalidade (ou não) das
práticas sexuais e da inferioridade racial (ou grupal), tão caras a
Lombroso e outros doutores do período fascista” (2002, p. 442).
Quanto às instâncias religiosas, Trevisan cita a exemplar fala de
D. Eugenio Sales, cardeal arcebispo do RJ, que em 1985 atribuiu a
propagação da AIDS a uma vingança da natureza que “violentada,
vinga-se”, chamando a AIDS de “chicote que acorda os
recalcitrantes.”
O
retorno de argumentos medievais e a fantasia da “peste gay”
favoreceram, em um primeiro momento, o reforço das autoridades
médica e religiosa, mas sua principal consequência foi promover o
descuido de outros grupos sociais em relação à prevenção da
doença, provocando a generalização da infecção e deixando
evidente que o vírus não manifestava predileções, para, nas
palavras de Trevisan, desencanto dos “arautos da homofobia”.
Diversas
áreas da sociedade que até então se consideravam imunes à doença
tiveram de se integrar em uma luta que passava a ser “de todos e
não mais dos chamados grupos de risco”(Trevisan, 2002, p.456). Em
1988 o Ministério da Saúde finalmente cria o Programa Nacional de
Prevenção e Controle da AIDS, buscando parceria nos grupos
vulneráveis ao contágio, não somente homossexuais, mas, também,
hemofílicos, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis
(UDI), fomentando a organização dos mesmos e o surgimento de
lideranças. Ainda neste registro, mesmo sob protestos de setores
conservadores, as cidades de Santos e Salvador organizaram programas
de trocas de seringa entre UDI e campanhas nacionais de prevenção à
contaminação pelo HIV começaram a ser empreendidas. Apesar da
oposição dos setores religiosos, foi se impondo a necessidade de
falar abertamente sobre práticas sexuais, assim como recomendar o
uso da – impronunciável, pouco tempo antes - camisa de vênus como
estratégia preventiva, inclusive estabelecendo canais regulares de
disponibilização de tal insumo para a população.
A
epidemia da AIDS, a despeito da negatividade inicial e do oportunismo
de alguns setores, acabou deixando também um legado positivo, por
ter formado comunidades, por ter favorecido a mobilização de vários
segmentos sociais, oportunizando a reivindicação da cidadania por
parte de grupos desprestigiados que finalmente encontraram
oportunidade de expressar suas demandas, reivindicar seus direitos e
até mesmo atuar em conjunto com a esfera oficial. Provocou também o
rompimento de silêncios em relação a temas-tabu, especialmente
aqueles relacionados às práticas sexuais, conforme menciona Terto
Jr em sua tese de doutorado.
Especificamente
em relação aos homossexuais, principais atingidos tanto física
quanto moralmente em um primeiro momento, a mobilização em torno da
AIDS e de suas consequências provocou a articulação desses
indivíduos, fomentou a sua organização grupal de uma forma que os
agentes da militância jamais havia conseguido fazer, além de
oportunizar a visibilização de demandas e necessidades específicas,
colocando, assim, a questão homossexual na pauta política geral.
Neste sentido, é possível dizer que a Aids, ao lado da atuação da
militância e da ascensão do mercado gay de consumo, constituiu um
dos fatores que favoreceram a constituição da cidadania dos
homossexuais¹.
E
foi trabalhando desta forma que, em cerca de 10 anos, o Brasil passou
da medievalização do discurso sobre a AIDS para se tornar um modelo
no tratamento e prevenção da doença, contando inclusive com o
reconhecimento da Organização Mundial de Saúde neste sentido.
Definitivamente, não foi pouca coisa.
MAS
O QUE TUDO ISSO TEM A VER COM O CRACK ?
Mas
porque abordar questões relacionadas à AIDS para falar sobre o
crack ?
Primeiro
porque, a despeito das especificidades, penso que podem ser traçados
alguns pontos de similaridade no processo de construção de uma
ideia social acerca de ambos os fenômenos, pelos motivos elencados a
seguir:
Assim
como a AIDS em seus primórdios, o advento do crack
constituiu/constitui objeto de pânico moral, privilegiado
inicialmente pela mídia sensacionalista, atitude que promove o
reforço de preconceitos e posturas retrógradas.
Porque
também em relação ao uso abusivo de drogas, assim como na
contaminação pelo HIV, o doente é visto pelo senso comum mais como
culpado ou cúmplice da doença do que como vítima. E ainda porque,
como ocorreu em relação a AIDS, as instituições religiosas, desta
vez as igrejas evangélicas neopentecostais, costumam abordar o
fenômeno em termos de pecado e danação.
A
sensação de deja
vu prossegue
quando se examina o discurso de uma parte das autoridades médicas,
que adotam posturas autoritárias e propõem retrocessos, a exemplo
de tratamentos baseados em métodos manicomiais que desrespeitam,
inclusive, a legislação vigente. A adesão de parte da sociedade a
este ponto de vista tampouco consegue ocultar, como também ocorreu
com a AIDS em seu surgimento, intenções higienistas e
discriminatórias.
Em
segundo lugar, abordo questões relacionadas à AIDS para tratar do
crack para que fiquemos atentos ao potencial de mudança social e
cidadania que também pode estar contido nesta segunda “epidemia”,
como o uso do crack vem sendo considerado. Pois se o fenômeno do
crack e das cracolândias promove por um lado o reforço do aparato
policial, esta medida vem, entretanto, revelando a insuficiência
deste tipo de abordagem para responder a uma demanda de imensa
complexidade como a do uso de drogas, na qual dimensões
psicológicas, sociais, culturais e políticas se entrelaçam. Vamos
tomar como exemplo desta afirmação a situação ocorrida em São
Paulo, no mês de janeiro de 2012, quando a chamada cracolâdia
paulista foi dispersada para que seus frequentadores enfrentassem
dificuldades e buscassem ajuda oficial, a ser oferecida em forma de
internação. Na prática tal manobra só fez aumentar, de forma
geral, as dificuldades existentes para lidar com a questão. A
dispersão desta população dificultou seu acesso pelos agentes de
saúde e provocou o surgimento de pequenas “cracolândias” em
vários pontos da cidade de São Paulo, situação que não foi
considerada interessante por nenhum setor, seja pelo governo, seja
pela população, seja pela polícia ou agentes de saúde /
assistência social/Redução de Danos.
O
fracasso retumbante 2de
abordagens unilaterais como a mencionada acima vem aos poucos
aguçando as consciências para a complexidade da questão, forçando
o governo e a sociedade civil a buscar outras alternativas, mais
eficientes, no sentido de diminuir a exclusão por meio do
favorecimento do acesso a direitos, e pela cooperação entre
diferentes instâncias, tais como médica, jurídica, educacional, de
saúde, que passam fatalmente pelo viés da cidadania, do acesso a
direitos.
Também
nas abordagens sobre o fenômeno do crack, testemunhamos muitas
vezes, assim como no surgimento da AIDS, o reforço de preconceitos e
estereótipos negativos, vez que o uso de drogas costuma ser
concebido como um problema individual, valorizado moralmente. As
“cracolândias”, no entanto, tem chamado atenção para outras
dimensões da questão - evidenciando seus aspectos sociais como
nenhum argumento científico, proferido por estudioso renomado, foi
capaz de fazer - ao deixar cada vez mais explícito que o grande
problema não é o uso de uma droga em si mesmo, mas sua associação
com a exclusão social.
O
uso abusivo de crack, a despeito de não ter sido objeto de cálculos
epidemiológicos e nem mesmo constituir infecção transmissível,
vem sendo concebido como epidemia e embora esta concepção contenha,
em alguma instância, a ideia de contágio, também favorece a
compreensão de que o uso de drogas é mais uma questão de saúde do
que um problema de polícia.
O
advento do crack vem também favorecendo a ascensão da estratégia
da redução de danos como alternativa legítima para abordar a
questão do uso de drogas, e, assim como o advento da AIDS, coloca na
pauta social e política as demandas de uma população que
continuaria sendo invisibilizada, além de provocar a discussão
sobre um tema (uso de drogas) a respeito do qual, como ocorria/ocorre
com a sexualidade, paira uma visão quase que exclusivamente
moralista. Coloca também a necessidade de fornecer informação de
qualidade aos jovens e discutir mais abertamente assuntos
considerados como tabu, a exemplo daqueles relacionados ao uso de
drogas. Neste sentido, mesmo o senso comum, tenho observado no
exercício cotidiano do meu trabalho, vem aos poucos entendendo que
repressão policial e a internação compulsória constituem
estratégias insuficientes, até mesmo ineficazes, sendo forçado a
buscar outras referências para entender questões relacionadas ao
uso de drogas.
Certamente
estamos ainda muito longe de atingir um estado ideal, mas penso que
finalmente o trabalho dos militantes na área da saúde mental e o
esforço de alguns intelectuais para favorecer um outro olhar sobre a
questão das drogas vem conseguindo reverberar na sociedade,
justamente por conta do encontro de uma droga de grande potencial
químico com uma massa de desvalidos que constituem o refugo de um
sistema econômico predatório e excludente.
E
a urgência e complexidade da questão tem impulsionado as
autoridades a pensar em soluções ampliadas. O crack, assim como a
AIDS, tem mobilizado o governo a financiar pesquisas, a dialogar com
estudiosos, a promover a Redução de Danos e incentivar estratégias
comunitárias. Em Salvador (Bahia), por exemplo, para dar conta dos
problemas aguçados pelo crack, nos últimos três anos foram criados
vários equipamentos, a exemplo de uma Superintendência especial, de
Prevenção e Acolhimento aos Usuários de Drogas e Apoio Familiar
(SUPRAD), ligada à Secretaria Estadual de Justiça, Cidadania e
Direitos Humanos, e dois novos Centros de Atenção Psicossocial para
Usuários de Álcool e outras Drogas (CAPSad), dispositivo
substitutivo de base territorial e pautado pelo respeito à
cidadania. O projeto Consultório de Rua, dispositivo clínico que
realiza ações de promoção à saúde e prevenção e redução de
riscos e danos conseqüentes do consumo de SPAs entre crianças,
adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social, foi
reabilitado em quatro municípios baianos, inicialmente por obra da
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD). Pouco tempo
depois, o Ministério da Saúde lançou edital nacional, visando
financiar a abertura de consultórios de rua em todo o Brasil. Em
dezembro de 2011 foi lançada a portaria 3.088, instituindo, no
âmbito do Sistema Único de Saúde, a Rede de Atenção
Psicossocial, em benefício dos portadores de sofrimento ou
transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack,
álcool e outras drogas. Em setembro de 2012 também foi aberto em
Salvador o Ponto de Encontro, primeiro centro de convivência voltado
para usuários de álcool e outras drogas do estado.
Em
suma e para concluir: a despeito de toda a movimentação dos
partidários dos manicômicos e do aumento do aparato de segurança,
a chamada “epidemia” do crack está obrigando a sociedade civil a
refletir e as autoridades a reconhecerem que é preciso favorecer
novos modelos de abordagem para enfrentar uma questão multifacetada
como a do uso de drogas, que não comporta respostas simplistas ou
unívocas, baseadas em preconceitos ou em ideologias oportunistas,
propagadas pelos empresários da miséria.
1 Alguns autores argumentam que o advento da AIDS favoreceu, por outro lado, certa normatização da sexualidade, que se impõe através da ideologia da prevenção. Pelúcio (2007), por outro lado, cunhou o termo “Sidadanização” para expressar que a alta prevalência da infecção pelo HIV é o que constitui a via de acesso das travestis e transexuais ao SUS, sem que se leve em conta que as necessidades sociais e de saúde dessas categorias ultrapassam o âmbito da AIDS/ISTs. Tais críticas, entretanto, de modo algum invalidam as intensas e significativas mudanças enunciadas neste texto, ou têm o poder de negar as transformações que foram operadas na sociedade, que inauguraram, inclusive, a possibilidade dessas críticas.
2 O estado de São Paulo foi alvo de ação do Ministério Público, devido ao entendimento de que na operação policial de desocupação da Cracolândia houve violação aos direitos humanos e prejuízo às ações de saúde e assistência à população que ali se concentrava. O documento da ação civil pública está disponível no link > http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/noticias/publicacao_noticias/2012/junho_2012/acp%20cracol%C3%A2ncia%20-%20%C3%BAltima%20vers%C3%A3o%20-%2030%20maio.pdf
BIBLIOGRAFIA
PELUCIO,
Larissa . Toda Quebrada na Plástica - corporalidade e construção
de gênero entre travestis paulistas. Campos (UFPR), Curitiba _PR, v.
06, n. 01, p. 97-112, 2005.
SONTAG
S. Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. São Paulo:
Companhia de Letras. 2007.
TERTO
JR., Veriano. Reinventando a vida: histórias sobre homossexualidade
e AIDS no Brasil (Tese de doutorado recebida pela internet. Dados da
disponibilização perdidos)
TREVISAN,
João Silvério. Devassos No Paraíso: a homossexualidade no Brasil,
da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Ed. Record. 2002.
Ação
Civil Pública contra o Estado de São Paulo (Acesso em 19/08/2012):
http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/noticias/publicacao_noticias/2012/junho_2012/acp%20cracol%C3%A2ncia%20-%20%C3%BAltima%20vers%C3%A3o%20-%2030%20maio.pdf
link :http://www.neip.info/index.php/content/view/2469.html
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