O silêncio, o que grita e o que não pode se
calar na
clínica das toxicomanias e para além dela1
Arnor Trindade
“este pileque
homérico do mundo
de que adianta ter boa
vontade
mesmo calada a boca
resta a cuca
dos bêbados do centro
da cidade”
Chico Buarque
Ao receber o convite para
estar aqui hoje, fiquei pensando, a respeito do título um tanto
quanto enfático desta mesa., e de como a violência aparece ou tem
aparecido na clínica que trabalho. Para situar, trabalho na saúde
pública, mais especificamente no âmbito da Saúde Mental, já há
alguns anos, aqui e em outros municípios.Neste percurso me dispus a
escutar não somente as falas, mas os gritos, os gemidos e o
silêncio. Sobretudo no que se refere à clínica voltada para
populações vulneráveis, onde o uso e o comércio de drogas
perpassam a vida das pessoas, modulam relações, conflitos,
dependências, engendram sofrimento, oferecem aos ouvidos relatos
repletos de dor, de violência, de estigma e exclusão.
Há no entanto um ruído
que ultrapassa a possibilidade da escuta, porque transcende os
limites da clínica, apontam para questões que vão para uma
dimensão que foge às possibilidades de intervenção que a clínica
nos ensina. Mesmo para uma clínica ampliada que, na sua escansão,
esbarra em questões éticas, políticas, sociais e econômicas.
Diante da complexidade
desta clínica, resolvi abordar o tema proposto dividindo minha
apresentação em dois tópicos: num primeiro, discorrerei sobre como
a proibição do uso de drogas interfere diretamente na atenção ao
usuário. Num segundo momento, mencionarei algumas situações que
chegaram ao atendimento após episódios de violência ligados ao
tráfico de drogas.
Adianto a minha
conclusão: a de que a criminalização do uso de algumas drogas é
extremamente perniciosa num processo de tratamento para indivíduos
que delas fazem uso. E mais ainda, que o fato da proibição aumenta
em muito os riscos de uso abusivo, de dependência e de morte pelo
uso de drogas.
Penso que uma das
questões mais evidentes que impacta as redes de atenção à saúde
no que diz respeito à assistência ao usuário de drogas é a
reprodução de um discurso social estigmatizante, discurso este
alimentado pelos meios de comunicação em massa. Recentemente num
trabalho de sensibilização que realizamos na Pampulha, com
profissionais da saúde, verificamos que certo imaginário em relação
ao usuário de drogas se faz presente na maioria dos profissionais. O
usuário é tido como doente, depravado, perigoso, mau, feio,
destituído de razão, etc. Uma série de adjetivos ruins que
qualificam este ente imaginário chamado usuário de drogas. Esta
percepção corrobora as informações da grande mídia sobre o uso
de drogas.
Chamados à razão, os
profissionais eram capazes de elaborar estes pre-conceitos,
entendendo que as drogas circulam em diferente espaços da sociedade
e que, em suma, somos todos, de um modo ou de outro, usuários de
drogas. Mas mesmo após esta conclusão, ao tomar a palavra e
referir-se novamente ao usuário, aparecia de novo este ser mítico e
perigoso. Ora, esta estratégia de demonizar grupos de pessoas é
extremamente perigosa. É uma tática utilizada por exemplo pelo
nazismo, que foi aos poucos, através dos seus mecanismos de
propaganda, demonizando alguns grupos de tal forma que, em dado
momento, boa parte da população achou justificável que aquelas
pessoas fossem exterminadas.
Este cenário repercute
diretamente nas redes de atenção. Se hoje alguém procura um
serviço de Saúde e tem uma questão ligada ao uso de drogas
ilícitas, dificilmente ele vai tocar no assunto. Não vai falar,
primeiro, porque o profissional que o acolher provavelmente não vai
abordar este tema, e também porque ele possivelmente não vai se
sentir seguro ao falar, pois fazê-lo corresponde a confessar um
crime, e o usuário sabe disso, mesmo que pense que não está
fazendo nada de errado. Ora, se ele tem alguma questão, ele em geral
vai guardar para ele. Não vai falar com o profissional de saúde,
que não o compreenderá e, via de regra, o condenará. Assim como
não falará com a família, ou com o padre ou o pastor pois de todos
os lados o que ele receberá serão advertências e condenações.
Estabelece-se se assim um pacto de silêncio que não só
impossibilita uma relação de tratamento, como interfere
negativamente em todas as outras relações.
Isto é particularmente
grave no caso dos adolescentes. Menciono aqui os adolescentes porque
é nesta fase que a maioria das pessoas têm suas primeiras
experiências de uso de drogas psicoativas. Nesta idade de intensos
conflitos, é relativamente comum que o indivíduo faça uso dessas
substâncias . Se ele faz uso de álcool ou tabaco, não o esconderá
por muito tempo- a menos que os pais sejam muito severos- permitindo
que se possa fazer alguma intervenção para evitar usos mais
problemáticos. No entanto, se ele faz uso de alguma droga ilícita,
ele tentará esconder ao máximo, não dirá aos pais ou aos
profissionais de saúde e nem a boa parte dos seus amigos. O uso
dessas drogas então só se evidenciará diante de um descuido ou
quando já for um uso problemático. Quando isto acontece, em geral,
instaura-se na família um ambiente de conflito, muitas vezes de
catástrofe, e o adolescente em questão passa a ser estigmatizado.
Verifico que em muitas situações os conflitos que surgem na família
após a descoberta do uso de drogas por um adolescente precipitam
outras situações que em geral são mais danosas que o uso de drogas
em si.
Nos últimos anos o tema
do uso de drogas tem sido mais abordado, de modo que não sei se é
comum acontecer situações como as que chegaram até mim há uns
anos atrás. Atendendo jovens num grupo de reflexão do artigo 28,
lei 11343, ouvi vários relatos de situações em que diante de uma
situação de emergência , as pessoas envolvidas não tomaram a
decisão necessária de pedir ajuda em virtude do temor de revelar o
uso de drogas ilícitas. Imaginem vocês uma turma de jovens
fazendo uso, por exemplo, de cocaína. De repente, um deles começa
a ter um sinal de overdose. Pode ser que eles sejam amigos, e neste
caso haverá uma preocupação maior com a vida do colega em crise.
Mas eles vão titubear em tomar a decisão correta que é pedir
socorro. Telefonarão para um dos pais, talvez aquele considerado
mais liberal no grupo de pais, ou chamarão a polícia? Ou o SAMU? Em
todas as situações estarão assumindo a co-autoria de um crime. E
se o jovem em questão vier a óbito? Não terão muito
esclarecimento sobre como agir, nunca conversaram abertamente sobre o
assunto com seus pais, nunca tiveram informações confiáveis sobre
o assunto, já que é um tema tabu. Em alguns casos esta indecisão
pode ser fatal.
O silêncio ignorante que
ainda permeia este tema traz uma outra consequência: uma dificuldade
de diagnóstico a nível da atenção primária. A imagem do usuário
imediatamente ligada ao tráfico e à violência produz um temor na
abordagem, tanto do usuário quanto do tema.
Também os usuários, do
seu lado, temem os profissionais de saúde. Temem com serão
recebidos por estes, como por eles serão julgados. Por diversas
vezes ouvi de usuários em tratamento: “não me encaminhem para
aquele centro de saúde, pois todos saberão no meu bairro que eu uso
cocaína”. Ora, o usuário fica numa situação de constante
receio, de não poder revelar-se. Se ele sofre, sofre em silêncio,
pois não lhe dão voz. Reproduz-se assim nos dispositivos de atenção
a violência que a sociedade destinou aos usuários. Diante de uma
pessoa concreta, reveste-lhe da vestimenta do ente odiado, inimigo
público da sociedade: como não tratá-lo com violência?
Aí se estabelece uma
contradição no discurso dos profissionais de saúde. Se de um lado
eles conseguem conceber que o usuário deve ser tratado de forma
humanizada, assim como qualquer outro usuário do SUS, tratam-no, na
maioria das vezes, como criminoso. Não consigo conceber como estes
profissionais , com o discurso de atendimento humanizado, de
acolhimento, ao mesmo tempo possam ser a favor da criminalização do
usuário, a tratar o usuário como lixo social, de exercer sobre ele
uma condenação equívoca, e além disso, aceitar sujeitá-lo a
todo tipo de violência.
Para além desta
violência das relações, há uma outra, mais contundente, que
atravessa a clínica com as pessoas em uso de drogas ilícitas: a
violência do tráfico. Esta atinge mais quanto mais vulnerável for
o sujeito, tanto do ponto de vista psíquico, quanto do ponto de
vista sócio econômico. Famílias que venderam suas casas,
ameaçadas, subjugadas por grupos que dominam territórios, usuários
em dívidas impagáveis, procurando proteção nos espaços de
tratamento. Agredidos, humilhados, subjugados em função da sua
vinculação às drogas. Usuários que sustentam o tráfico com seu
corpo (os olheiros), usuários condenados por tráfico de drogas,
usuários vítimas de abordagem policiais violentas .
Mas a violência do
tráfico não atinge só os usuários de drogas ilícitas. Não é só
o sofrimento destes usuários que aparece na clínica em saúde
mental. Vou mencionar aqui algumas situações que ilustram um pouco
de como o tráfico de drogas traz prejuízos ainda maiores do que
aqueles relacionados ao uso de drogas.
Lembro de uma senhora que
atendi, por um breve período, há alguns anos atrás.Ela me contava
que certa manhã, ao sair no portão da sua casa, encontrara duas
sacolas. Horrorizada, ela viu que se tratavam de pedaços de corpo
humano. Desesperada, constatou logo que eram partes do corpo do seu
filho de 18 anos. Nos atendimentos, a maior parte do tempo o que ela
fazia era chorar, e gritar, e perguntar porquê: não entendia como a
vida do seu filho, carinhoso, forte, trabalhador, pudera ter tal
desfecho. Aos gritos desesperados daquela mulher, eu só podia
aferecer escuta. Às indagações, eu só conseguia responder com o
silêncio.
Neste mesmo serviço
atendi uma outra senhora em uma situação parecida. Neste caso, ela
quase não falava, ficava a maior parte do tempo em silêncio, o
olhar perdido, com um sofrimento que, percebia-se, estava
insuportável de carregar. Ela tinha uma filha adolescente que foi
requisitada por um grupo de pessoas ligado ao tráfico de drogas onde
ela morava. Como forma de proteger a filha, ela mandou-a para morar
com parentes em outra localidade. Em retaliação, um grupo de
traficantes entrou em sua casa e a estrupou, estrupou também o seu
filho, fez o mesmo com seu marido e o executou diante dos olhos dela.
Seus olhos continuavam perdidos, como se aquelas imagens ainda
sobrepusessem tudo o que estava diante da sua vista.
Em outra situação, uma
família que também usou a estratégia de mandar a filha
adolescente, também requisitada pelo tráfico, para outra
localidade. Os traficantes optaram por pegar a irmã, de cinco anos,
e dela fazer uso sexual. Segundo consta, a criança foi abusada por
vários deles, sendo depois devolvida à família. Hoje com onze
anos, acompanhada num programa de saúde mental, a criança é
conhecida como “rombuda” na comunidade onde mora, e ainda vive
as sequelas físicas, psíquicas e sociais daquela atrocidade.
Para finalizar, trago um
relato de um paciente que atendi recentemente. Ele me contou que após
uma briga, na construção em que trabalhava, desferiu alguns golpes
com uma ferramenta contra outro homem. Foi condenado por tentativa de
homicídio, ficando por cinco anos preso. Neste período, ele não
teve contato com sua família. Inclusive, nem avisou à família que
fôra preso, segundo ele, por vergonha. Ao retornar pra casa, após
cumprir a pena, ele depara com uma realidade mudada. Encontra seu
filho de 14 anos usando lente de contato azuis, pilotando moto,
usando tênis caros. Diz ele que vai a um lugar onde o filho se reúne
com amigos e vê vários adolescentes portando arma de fogo
naturalmente. Fica sabendo de um homicídio no qual o filho estava
envolvido. Constata que este filho agora é a autoridade na casa,
inclusive sobre a mãe. É ele que sustenta a família. Este paciente
se desespera, se sente culpado, mas não sabe mais como ocupar seu
lugar naquele lar.
Trouxe todas estes
relatos e situações para finalizar dizendo que os prejuízos nas
vidas das pessoas decorrentes da proibição, e em consequência, do
tráfico de drogas, são muito, mas muito maiores que os prejuízos
que o uso de qualquer droga pode causar. Que são afetadas pessoas,
famílias, comunidades inteiras, e não apenas as pessoas que usam
drogas. Que estas situações apontam para os limites da clínica,
onde toda clínica é pouca. A estas situações gritantes,
berrantes, chocantes, toda escuta parece não apenas insuficiente,
mas muitas vezes insuportável.
Estas situações nos
convocam, portanto, para atuações para além da clínica. Do
lugar da escuta, é preciso sair também para o campo do discurso, da
manifestação, da proposição, do debate. É também no campo da
política que a nossa atuação é requisitada. Por isto estamos
aqui hoje,
1Texto
apresentado no Seminário da Frente Mineira sobre Drogas e Direitos
Humanos: “Desconstruindo a Proibição”, em 09 de outobro de
2014, na mesa: “Atendendo na Guerra: a clínica banhada em
sangue”.
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