sábado, 18 de outubro de 2014

O silêncio, o que grita e o que não pode se calar na clínica das toxicomanias e para além dela

O silêncio, o que grita e o que não pode se calar na
clínica das toxicomanias e para além dela1


Arnor Trindade
este pileque homérico do mundo
de que adianta ter boa vontade
mesmo calada a boca resta a cuca
dos bêbados do centro da cidade”
Chico Buarque


Ao receber o convite para estar aqui hoje, fiquei pensando, a respeito do título um tanto quanto enfático desta mesa., e de como a violência aparece ou tem aparecido na clínica que trabalho. Para situar, trabalho na saúde pública, mais especificamente no âmbito da Saúde Mental, já há alguns anos, aqui e em outros municípios.Neste percurso me dispus a escutar não somente as falas, mas os gritos, os gemidos e o silêncio. Sobretudo no que se refere à clínica voltada para populações vulneráveis, onde o uso e o comércio de drogas perpassam a vida das pessoas, modulam relações, conflitos, dependências, engendram sofrimento, oferecem aos ouvidos relatos repletos de dor, de violência, de estigma e exclusão.

Há no entanto um ruído que ultrapassa a possibilidade da escuta, porque transcende os limites da clínica, apontam para questões que vão para uma dimensão que foge às possibilidades de intervenção que a clínica nos ensina. Mesmo para uma clínica ampliada que, na sua escansão, esbarra em questões éticas, políticas, sociais e econômicas.

Diante da complexidade desta clínica, resolvi abordar o tema proposto dividindo minha apresentação em dois tópicos: num primeiro, discorrerei sobre como a proibição do uso de drogas interfere diretamente na atenção ao usuário. Num segundo momento, mencionarei algumas situações que chegaram ao atendimento após episódios de violência ligados ao tráfico de drogas.

Adianto a minha conclusão: a de que a criminalização do uso de algumas drogas é extremamente perniciosa num processo de tratamento para indivíduos que delas fazem uso. E mais ainda, que o fato da proibição aumenta em muito os riscos de uso abusivo, de dependência e de morte pelo uso de drogas.
Penso que uma das questões mais evidentes que impacta as redes de atenção à saúde no que diz respeito à assistência ao usuário de drogas é a reprodução de um discurso social estigmatizante, discurso este alimentado pelos meios de comunicação em massa. Recentemente num trabalho de sensibilização que realizamos na Pampulha, com profissionais da saúde, verificamos que certo imaginário em relação ao usuário de drogas se faz presente na maioria dos profissionais. O usuário é tido como doente, depravado, perigoso, mau, feio, destituído de razão, etc. Uma série de adjetivos ruins que qualificam este ente imaginário chamado usuário de drogas. Esta percepção corrobora as informações da grande mídia sobre o uso de drogas.

Chamados à razão, os profissionais eram capazes de elaborar estes pre-conceitos, entendendo que as drogas circulam em diferente espaços da sociedade e que, em suma, somos todos, de um modo ou de outro, usuários de drogas. Mas mesmo após esta conclusão, ao tomar a palavra e referir-se novamente ao usuário, aparecia de novo este ser mítico e perigoso. Ora, esta estratégia de demonizar grupos de pessoas é extremamente perigosa. É uma tática utilizada por exemplo pelo nazismo, que foi aos poucos, através dos seus mecanismos de propaganda, demonizando alguns grupos de tal forma que, em dado momento, boa parte da população achou justificável que aquelas pessoas fossem exterminadas.

Este cenário repercute diretamente nas redes de atenção. Se hoje alguém procura um serviço de Saúde e tem uma questão ligada ao uso de drogas ilícitas, dificilmente ele vai tocar no assunto. Não vai falar, primeiro, porque o profissional que o acolher provavelmente não vai abordar este tema, e também porque ele possivelmente não vai se sentir seguro ao falar, pois fazê-lo corresponde a confessar um crime, e o usuário sabe disso, mesmo que pense que não está fazendo nada de errado. Ora, se ele tem alguma questão, ele em geral vai guardar para ele. Não vai falar com o profissional de saúde, que não o compreenderá e, via de regra, o condenará. Assim como não falará com a família, ou com o padre ou o pastor pois de todos os lados o que ele receberá serão advertências e condenações. Estabelece-se se assim um pacto de silêncio que não só impossibilita uma relação de tratamento, como interfere negativamente em todas as outras relações.
Isto é particularmente grave no caso dos adolescentes. Menciono aqui os adolescentes porque é nesta fase que a maioria das pessoas têm suas primeiras experiências de uso de drogas psicoativas. Nesta idade de intensos conflitos, é relativamente comum que o indivíduo faça uso dessas substâncias . Se ele faz uso de álcool ou tabaco, não o esconderá por muito tempo- a menos que os pais sejam muito severos- permitindo que se possa fazer alguma intervenção para evitar usos mais problemáticos. No entanto, se ele faz uso de alguma droga ilícita, ele tentará esconder ao máximo, não dirá aos pais ou aos profissionais de saúde e nem a boa parte dos seus amigos. O uso dessas drogas então só se evidenciará diante de um descuido ou quando já for um uso problemático. Quando isto acontece, em geral, instaura-se na família um ambiente de conflito, muitas vezes de catástrofe, e o adolescente em questão passa a ser estigmatizado. Verifico que em muitas situações os conflitos que surgem na família após a descoberta do uso de drogas por um adolescente precipitam outras situações que em geral são mais danosas que o uso de drogas em si.

Nos últimos anos o tema do uso de drogas tem sido mais abordado, de modo que não sei se é comum acontecer situações como as que chegaram até mim há uns anos atrás. Atendendo jovens num grupo de reflexão do artigo 28, lei 11343, ouvi vários relatos de situações em que diante de uma situação de emergência , as pessoas envolvidas não tomaram a decisão necessária de pedir ajuda em virtude do temor de revelar o uso de drogas ilícitas. Imaginem vocês uma turma de jovens fazendo uso, por exemplo, de cocaína. De repente, um deles começa a ter um sinal de overdose. Pode ser que eles sejam amigos, e neste caso haverá uma preocupação maior com a vida do colega em crise. Mas eles vão titubear em tomar a decisão correta que é pedir socorro. Telefonarão para um dos pais, talvez aquele considerado mais liberal no grupo de pais, ou chamarão a polícia? Ou o SAMU? Em todas as situações estarão assumindo a co-autoria de um crime. E se o jovem em questão vier a óbito? Não terão muito esclarecimento sobre como agir, nunca conversaram abertamente sobre o assunto com seus pais, nunca tiveram informações confiáveis sobre o assunto, já que é um tema tabu. Em alguns casos esta indecisão pode ser fatal.

O silêncio ignorante que ainda permeia este tema traz uma outra consequência: uma dificuldade de diagnóstico a nível da atenção primária. A imagem do usuário imediatamente ligada ao tráfico e à violência produz um temor na abordagem, tanto do usuário quanto do tema.

Também os usuários, do seu lado, temem os profissionais de saúde. Temem com serão recebidos por estes, como por eles serão julgados. Por diversas vezes ouvi de usuários em tratamento: “não me encaminhem para aquele centro de saúde, pois todos saberão no meu bairro que eu uso cocaína”. Ora, o usuário fica numa situação de constante receio, de não poder revelar-se. Se ele sofre, sofre em silêncio, pois não lhe dão voz. Reproduz-se assim nos dispositivos de atenção a violência que a sociedade destinou aos usuários. Diante de uma pessoa concreta, reveste-lhe da vestimenta do ente odiado, inimigo público da sociedade: como não tratá-lo com violência?

Aí se estabelece uma contradição no discurso dos profissionais de saúde. Se de um lado eles conseguem conceber que o usuário deve ser tratado de forma humanizada, assim como qualquer outro usuário do SUS, tratam-no, na maioria das vezes, como criminoso. Não consigo conceber como estes profissionais , com o discurso de atendimento humanizado, de acolhimento, ao mesmo tempo possam ser a favor da criminalização do usuário, a tratar o usuário como lixo social, de exercer sobre ele uma condenação equívoca, e além disso, aceitar sujeitá-lo a todo tipo de violência.


Para além desta violência das relações, há uma outra, mais contundente, que atravessa a clínica com as pessoas em uso de drogas ilícitas: a violência do tráfico. Esta atinge mais quanto mais vulnerável for o sujeito, tanto do ponto de vista psíquico, quanto do ponto de vista sócio econômico. Famílias que venderam suas casas, ameaçadas, subjugadas por grupos que dominam territórios, usuários em dívidas impagáveis, procurando proteção nos espaços de tratamento. Agredidos, humilhados, subjugados em função da sua vinculação às drogas. Usuários que sustentam o tráfico com seu corpo (os olheiros), usuários condenados por tráfico de drogas, usuários vítimas de abordagem policiais violentas .


Mas a violência do tráfico não atinge só os usuários de drogas ilícitas. Não é só o sofrimento destes usuários que aparece na clínica em saúde mental. Vou mencionar aqui algumas situações que ilustram um pouco de como o tráfico de drogas traz prejuízos ainda maiores do que aqueles relacionados ao uso de drogas.

Lembro de uma senhora que atendi, por um breve período, há alguns anos atrás.Ela me contava que certa manhã, ao sair no portão da sua casa, encontrara duas sacolas. Horrorizada, ela viu que se tratavam de pedaços de corpo humano. Desesperada, constatou logo que eram partes do corpo do seu filho de 18 anos. Nos atendimentos, a maior parte do tempo o que ela fazia era chorar, e gritar, e perguntar porquê: não entendia como a vida do seu filho, carinhoso, forte, trabalhador, pudera ter tal desfecho. Aos gritos desesperados daquela mulher, eu só podia aferecer escuta. Às indagações, eu só conseguia responder com o silêncio.

Neste mesmo serviço atendi uma outra senhora em uma situação parecida. Neste caso, ela quase não falava, ficava a maior parte do tempo em silêncio, o olhar perdido, com um sofrimento que, percebia-se, estava insuportável de carregar. Ela tinha uma filha adolescente que foi requisitada por um grupo de pessoas ligado ao tráfico de drogas onde ela morava. Como forma de proteger a filha, ela mandou-a para morar com parentes em outra localidade. Em retaliação, um grupo de traficantes entrou em sua casa e a estrupou, estrupou também o seu filho, fez o mesmo com seu marido e o executou diante dos olhos dela. Seus olhos continuavam perdidos, como se aquelas imagens ainda sobrepusessem tudo o que estava diante da sua vista.


Em outra situação, uma família que também usou a estratégia de mandar a filha adolescente, também requisitada pelo tráfico, para outra localidade. Os traficantes optaram por pegar a irmã, de cinco anos, e dela fazer uso sexual. Segundo consta, a criança foi abusada por vários deles, sendo depois devolvida à família. Hoje com onze anos, acompanhada num programa de saúde mental, a criança é conhecida como “rombuda” na comunidade onde mora, e ainda vive as sequelas físicas, psíquicas e sociais daquela atrocidade.

Para finalizar, trago um relato de um paciente que atendi recentemente. Ele me contou que após uma briga, na construção em que trabalhava, desferiu alguns golpes com uma ferramenta contra outro homem. Foi condenado por tentativa de homicídio, ficando por cinco anos preso. Neste período, ele não teve contato com sua família. Inclusive, nem avisou à família que fôra preso, segundo ele, por vergonha. Ao retornar pra casa, após cumprir a pena, ele depara com uma realidade mudada. Encontra seu filho de 14 anos usando lente de contato azuis, pilotando moto, usando tênis caros. Diz ele que vai a um lugar onde o filho se reúne com amigos e vê vários adolescentes portando arma de fogo naturalmente. Fica sabendo de um homicídio no qual o filho estava envolvido. Constata que este filho agora é a autoridade na casa, inclusive sobre a mãe. É ele que sustenta a família. Este paciente se desespera, se sente culpado, mas não sabe mais como ocupar seu lugar naquele lar.

Trouxe todas estes relatos e situações para finalizar dizendo que os prejuízos nas vidas das pessoas decorrentes da proibição, e em consequência, do tráfico de drogas, são muito, mas muito maiores que os prejuízos que o uso de qualquer droga pode causar. Que são afetadas pessoas, famílias, comunidades inteiras, e não apenas as pessoas que usam drogas. Que estas situações apontam para os limites da clínica, onde toda clínica é pouca. A estas situações gritantes, berrantes, chocantes, toda escuta parece não apenas insuficiente, mas muitas vezes insuportável.

Estas situações nos convocam, portanto, para atuações para além da clínica. Do lugar da escuta, é preciso sair também para o campo do discurso, da manifestação, da proposição, do debate. É também no campo da política que a nossa atuação é requisitada. Por isto estamos aqui hoje,












1Texto apresentado no Seminário da Frente Mineira sobre Drogas e Direitos Humanos: “Desconstruindo a Proibição”, em 09 de outobro de 2014, na mesa: “Atendendo na Guerra: a clínica banhada em sangue”.

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