domingo, 30 de novembro de 2014

L’enfer, les anges et l’idiot


Willian Blake, ilustração da Divina Comédia, 
Inferno, Canto V, 37-138, 'O redemoinho dos amantes'
Testemunho de Felipe Lacadée sobre o Consultório de Rua
Eu gostaria de trazer aqui um modesto testemunho de uma experiência vivida com as pessoas que trabalham no consultório de rua. Propuseram a mim e ao Mario Elkin Ramirez, psicanalista em Medelin, na Colômbia, dar uma supervisão para uma equipe de técnicos do consultório de rua.
Eu tinha respondido que sim, estava entusiasmado em ver como eles trabalhavam e, um pouco antes, eles me deram o texto para comentar. Primeiramente, nós subimos em duas vans muito confortáveis. As cadeiras estavam dispostas de uma tal forma que eu pensei que seria ali o lugar do consultório de rua, mas me disseram que não, que aquilo era somente um meio de se chegar ao local. Partimos, então, em duas vans. Depois chegamos em um local bem estranho, estacionamos na frente de um muro, em uma rua bem precária, em um passeio onde estavam muitas pessoas, umas apoiadas neste muro, algumas conversando e outras isoladas. Todos davam a estranha impressão de uma errância, de estarem bastante perdidos e sozinhos, mesmo se de tempos em tempos uma tentativa de troca parecia acontecer. À beira do passeio havia vários detritos de dejetos, e às vezes, alguns iam até ali para catar restos de objetos que parecia interessá-los.
Descemos da van e começamos a andar, quando nos disseram : « é muito perigoso, voltem, coloquem suas bolsas na van  e seguiremos a pé até o local ». Pensando que iríamos em uma sala para trabalhar, eu tiro da minha bolsa o texto que eu iria comentar, meu caderno e minha caneta Mont Blanc. Partimos, então, para irmos até o local. De repente, sem nos prevenir, nos fizeram entrar na favela depois de subir um pequeno morro de terra. Eu pensei, então, que o lugar era dentro da favela, um pouco como a favela da Maré no Rio de Janeiro, para onde Marcus André Vieira tinha me convidado em 2007. Eu já tinha notado que todas as técnicas tinham uma bolsa de onde elas tiravam uns preservativos, entregando-os aos homens e criando com eles uma espécie de ligação bastante alegre. Eram mulheres cujo sorriso e gentileza me tocaram, neste lugar onde é mais um certo horror diante de tais corpos perdidos e devastados pelo sofrimento que me tinham primeiramente chamado a atenção.
Estávamos, então, no alto do pequeno morro, na entrada da favela. Eu fiquei impressionado pelo que nomeei de espécie de cadáveres-vivos que pareciam estar em uma espera viva e muito tensa. Como se reinasse ali uma atmosfera de tensão retida, pronta para explodir. Muita gente estava ali na entrada desse beco. Eles me disseram que estavam esperando os traficantes de droga. A gente sentia que para alguns a situação era vital e que bastava um nada para que seus corpos explodissem. Eu não me sentia bem de jeito nenhum e pensava : apressemo-nos para irmos ao local onde eu achava que iríamos nos sentar tranquilos para enfim, começar a supervisão. Ali eu estava mais na super-visão, no fato de ver e olhar, mas também com o estranho sentimento que me olhavam. Uma certa paranóia começava a invadir meu ser, mas nossas técnicas estavam totalmente ocupadas com outra coisa. Dar os preservativos e sobretudo conversar com quase cada um deles, como se elas estivessem em terreno conhecido.
Encontramos com o Fernando, espécie de olheiro, que gritou assim que passamos : « Normal ». Devo confessar para vocês que eu não achava, da minha parte, nada de normal. Pelo contrário, isso não resolvia minha paranóia. Apresentaram-me ao Fernando e o disseram que eu era francês. Então ele se pôs a nos explicar que ele não compreendia a discriminação do qual eles eram objeto : « entretanto, eu não mordo ». Como se ele nos explicasse que ele não era um cachorro, mas um ser humano. Ele diz não compreender porque o governo não fazia nada por eles, como se estivessem abandonados a eles mesmos, obrigados a se drogar para sobreviver. Explicaram-me que « Normal » queria dizer que a porta estava aberta. Então, eu fiquei seguro, é normal que a porta do inferno esteja aberta para nós.
Comecei uma conversa com um adolescente. No início ele estava tímido e reflexivo, parecia pensar antes de me responder, como se para ele as palavras devessem ser levadas à sério. Eu consegui conversar um pouco com ele, falando do fato de que a vida não era fácil e ele respondeu que ele estava bem e que de toda forma escolhíamos nossa vida. Essa fala  ressoou em todo meu corpo e humanizou esta entrada bastante traumática, esta porta aberta deste inferno que é uma favela. Foi então que eu vi bem perto desta porta, desta boca aberta sobre este monstro da favela, surgir nossos Anjos de Branco. Esta foi expressão vinda não do céu, mas do meu pensamento confuso, que me fez dizer : essas técnicas são anjos de branco. E eu continuava a olhar meus estranhos anjos de branco falando, descidos não do céu, mas da van comigo, para ir a este inferno, ao encontro de todas essas almas errantes, corpos fatigados, magros, tensos, sujos, com gestos bastante lentos, com bocas desdentadas e traços de violência bastante marcados sobre os rostos e corpos, zumbis, mas com uma intensidade no olhar bastante surpreendente. Olhares que inclusive se animavam desde que os anjos de branco falassem com eles. Ali eu fiquei tocado ao ver ao vivo o que Lacan aconselhava aos seus alunos, o de não recuar diante da psicose. Aqui o que se aplicava aos nossos anjos de branco era de não recuar diante do que se apresentava a elas, naquele muro. Apoiar-se deste muro onde os corpos perdidos estão apoiados para falar em pé em companhia deste outro, que de repente começa a conversar e onde eu fiquei tocado ao escutar uma certa alegria, neste encontro sempre inventado. Como se ali elas estivessem dado um empurrãozinho na língua para que esta, saindo destes corpos esgotados e drogados, seja enfim viva. Não existe preservativo para a língua, eis o que me ensinavam meus anjos de brancos tão decididos. Mas eu, com meu caderno na mão, ainda esperava ir ao local da consulta. Eu tinha notado que contra o muro estavam três pessoas que se destacavam pela sua elegência, pela qualidade de suas roupas. Elas falavam entre elas. Eram três travestis. E eis que nossos anjos vão oferecê-las preservativos, falam e me apresentam a elas. Uma delas, Isabela perguntava : « mas por que você vem até nós, por que você se interesssa pela gente, para nós é um mistério, isso é amor ? », de repente eu compreendi melhor a função dos nossos anjos de branco : para além do objeto preservativo, poder oferecer a elas alguma coisa de essencial, isto é, sua presença. E era isso que Isabela chamava de amor, ou seja ,dar ao outro o que não se tem. Ela tinha compreendido bem que o mais importante não era este objeto preservativo, mas a presença delas ali, mais perto do muro da língua. E então meus anjos de branco estavam sem « preservativos » para o ser. É o ser que elas oferecem, seres de fala. Fazer cair o muro da segregação, que Fernando tinha se referido quando entramos. Estando ali elas dão o que elas não tem, alguma coisa de indizível encarnado pela presença e que é o desejo do Outro, desejo de se oferecer para este corpo perdido no muro, este objeto que se chama a fala. Elas oferecem uma fala possível, ali onde eles se imaginam os mais rejeitados no muro da língua. Compreendemos o famoso « o que queres de mim ? » « Che vuoi ? », de que fala Lacan. Quem permite ao sujeito se perguntar « o que sou eu  para você «  ou seja, « o que sou, então ? » Entendemos então uma abertura, para eles, para uma subjetivação ainda possível do mistério da existência. Esse mistério que elas encarnam para Isabela é o mistério do desejo do Outro, que por um instante os separa de sua condição de objeto de gozo puro, isto é, o de ser um corpo reduzido e exigir seu complemento de ser, ou seja, a droga. De fato, é mais a droga que os consome, eles são reduzidos a serem esses objetos oferecendo o gozo de seus corpos perdidos a esse Deus Obscuro do gozo que se nomeia a droga. Eles que não têm mais corpos dignos de serem amáveis, de serem amados pelo único Outro : a droga torna-se seu parceiro como figura da morte. Seu Outro se nomeia neste lugar de inferno : A droga. É ela que se troca na entrada, tal como uma boca devoradora pronta para consumir a todos. É então que para fazer barreira a essa devoração de corpos pelo Deus droga é importante encontrar os anjos de branco do consultório da rua.
Eu tinha ainda meu caderno e me perguntava : quando vamos ao local e para sentarmos tranquilos e falar do caso e da supervisão ? Foi então que me disseram que iríamos embora, pois a consulta da rua tinha acabado de acontecer ali diante dos meus olhos. Mas perguntando a elas se não havia uma sala, uma casa na favela, compreendi com meu caderno e com minha caneta Mont Blanc que eu era um idiota !!! Antes de irmos embora, um jovem veio sentar na nossa van e nos fez um improviso de « língua viva », uma espécie de encantamento de gozo onde ele endereçou uma especie de oração singular na língua dele para Deus.
Philippe Lacadée, 1º de setembro de 2014.
Tradução : Fabiana Campos
 

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