Parecer do Conselho Federal de Psicologia (CFP) sobre o Projeto de Lei nº 7663/2010[1]
O tema da política de
drogas pressupõe uma complexidade que precisa ser reconhecida por quem desejar
abordá-lo com seriedade. Há muitas formas de se oferecer tratamento equivocado
aos desafios postos pelo consumo de drogas no mundo, pela dependência química e
pelo tráfico de substâncias tornadas ilícitas, mas a primeira e a mais
importante destas formas é a simplificação.
Quando tratamos de
políticas públicas é preciso que as respostas delineadas pelo Estado sejam
amparadas por evidências científicas, que os programas implementados sejam
monitorados constantemente e que seus resultados sejam avaliados por
instituições independentes e especializadas. Em nossa experiência como Nação,
uma parte expressiva dos fracassos alcançados pelo Poder Público está vinculada
à escolha de alternativas impostas pelo senso comum ou por estratégias
políticas que não guardam qualquer relação com evidências, nem com o exame criterioso
dos resultados obtidos a partir de sua implementação. Muitas das respostas apresentadas como
soluções exigidas pela “opinião pública” e apoiadas pela mídia não têm
produzido qualquer resultado positivo e, não raro, conseguem agravar os
problemas que pretenderam resolver.
No que concerne às
políticas públicas sobre drogas, os Estados Unidos têm oferecido exemplos muito
expressivos do quanto podem ser graves os efeitos de escolhas equivocadas. Em
1920, a 18ª emenda à Constituição americana estabeleceu a proibição da
fabricação, do comércio, do transporte, da exportação e da importação de
bebidas alcoólicas. O governo dos EUA acreditava que o álcool era a fonte de
todos os problemas sociais e que sua proibição seria o melhor caminho para
reconduzir a população à virtude. Esta era, aliás, uma opinião muito comum e,
um século antes, já era a posição de destacadas lideranças religiosas
americanas como Cotton Mather, Lyman Beecher, John Wesley e o reverendo Andrew
Elliot. Quando as bebidas alcoólicas foram proibidas nos Estados Unidos, o
reverendo Billt Sunday fez uma previsão:
O reino das lágrimas acabou. As favelas serão, em breve, apenas memória.
Nós iremos transformar nossas prisões em fábricas e as cadeias (dos condados)
em armazéns e silos. Os homens caminharão eretos a partir de agora, as mulheres
irão sorrir e as crianças, gargalhar.[2]
A política
proibicionista conhecida como “Lei Seca” (também chamada The Noble
Experiment), entretanto, não reduziu o consumo de álcool (HU,
1950:53; ROSEMBLOOM, 1935:51). Alguns estudos apresentam evidências de
substancial aumento do consumo a partir dos speakesies, bares clandestinos e subterrâneos (THORNTON, 1991). O crime explodiu
durante os treze anos de proibição do álcool, com elevação impressionante nas
taxas de homicídio. A corrupção se instalou nas polícias americanas e centenas
de policiais foram mandados para a prisão por seus vínculos com os traficantes
de bebida[3].
Por volta de 1930, cerca da metade da lotação das prisões federais já era de
condenados por crimes relacionados ao álcool e outras drogas. O proibicionismo,
ao mesmo tempo, estimulou a formação de grupos mafiosos. Al Capone, que
comandou o tráfico de bebidas em Chicago, é, neste sentido, apenas o resultado
mais conhecido de uma legislação cheia de boas intenções e totalmente
equivocada. Esta experiência, no mais, confirmou aquilo que Cowan (1986:30)
denominou como “A Lei de Aço da Proibição” (The Iron Law of Prohibition) segundo a qual, quanto mais intensos são os esforços e os
investimentos para a aplicação da proibição, mais potentes as substâncias
proibidas se tornam. Quando drogas ou bebidas alcoólicas são proibidas elas têm
grande variabilidade em sua potência, são adulteradas com substâncias
desconhecidas e perigosas, porque não são produzidas nem consumidas nos limites
construídos pelo próprio mercado. Durante a Lei Seca nos EUA, por exemplo, a ilegalidade criou espaço para que produtores inescrupulosos vendessem
álcool metílico, o que produziu cerca de 30 mil mortos e mais de 100 mil casos
de lesões permanentes como cegueira e paralisia (ESCOHOTADO, 1994: 94-95).
Esta lembrança
permite situar as razões pelas quais o direito penal seja, possivelmente, a
área onde mais se apresentem medidas que terminam produzindo efeitos opostos
aos pretendidos. Ao longo da história do Brasil, temos experimentado uma
política criminal estruturada na promessa dissuasória das penas privativas de
liberdade. Nosso Código Penal segue prevendo o encarceramento para a grande
maioria dos delitos, inclusive para aqueles praticados sem violência. Os
resultados obtidos por esta experiência, entretanto, jamais foram avaliados
pelo Poder Público. Os governantes, gestores, legisladores, magistrados e
membros do Ministério Público, tanto quanto os chamados “formadores de opinião”,
seguem, em sua maioria, convictos de que os problemas enfrentados pelo Brasil
na área da segurança pública seriam melhor abordados, ou mesmo solucionados,
caso pudéssemos contar com uma legislação penal “dura” - que estabelecesse
penas mais graves e assegurasse maior número de condenações à prisão. Em apoio
a estas expectativas, ao invés de evidências, se oferece mitos como o
“Tolerância Zero”, que seguem mobilizando tanto a ingenuidade quanto a preguiça[4]. Os adeptos das
políticas de “tolerância zero” no Brasil, a propósito, ficariam um tanto
desnorteados se soubessem que, entre 1990 e 2009, as taxas de encarceramento
nos EUA subiram 65%, mas, em Nova Iorque, elas caíram 28%[5].
Assim, a cidade norte-americana que apresentou os melhores resultados na redução
do crime e da violência foi aquela que menos empregou as penas de prisão. Como
o assinala Franklin Zimring, o que a experiência de Nova Iorque demonstrou, na
verdade, foi que os EUA só conheciam uma maneira de abordar o crime e a
violência: condenar as pessoas à prisão, e que esta forma não era eficiente
para a redução do crime e da violência, podendo mesmo agravar tais problemas.
A criminalização da produção e do consumo de drogas no Brasil começa em
1932, com a Consolidação das Leis Penais. A expressão “substâncias venenosas”
empregada no Código Penal de 1890 é, então, substituída por “substâncias
entorpecentes” e se comina a pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos para
quem as oferecesse. Na ditadura do Estado Novo, o proibicionismo foi alargado
com o Decreto-lei 891/38 que estabeleceu a internação obrigatória de
“toxicômanos” e agravou as penas para aqueles que usavam drogas para
a “satisfação de prazeres sexuais” (KARAN, 2010). Depois disso, a
criminalização da venda e do consumo de drogas tornadas ilícitas só se
aprofundou. Primeiramente no Código Penal de 1940; depois, em nova ditadura,
com a Lei 4.451/64 que cria novo crime: o de plantar os espécimes vegetais dos
quais se originam as substâncias proibidas. Depois, o Decreto-lei 385/68 irá
especificar o crime de “uso pessoal” mantendo as mesmas penas previstas para o
tráfico. Em 1971, a Lei 5.726 irá
agravar as penas, estabelecendo o crime de “quadrilha para tráfico”, que
poderia ser formada por duas pessoas (!); determinando o trancamento de matrícula
do estudante usuário e a perda do cargo de diretores de estabelecimentos de
ensino que deixassem de comunicar às autoridades sanitárias os casos de uso e
“tráfico” dessas substâncias no âmbito escolar. Mais adiante, a Lei 6.368/76
triplicou as penas para o tráfico que passaram a ser de 3 (três) a 15 (quinze)
anos de reclusão.
Sintetizando
esta evolução do proibicionismo no Brasil, Karan (2010) lembra que outras
medidas de agravamento penal foram impostas ao tráfico:
Aplicam-se ainda às
criminalizadas condutas relacionadas à produção e ao comércio das drogas
tornadas ilícitas dispositivos constantes de outras leis especiais: a Lei
8.072/90 que, dispondo sobre os crimes ditos “hediondos” e os a eles
equiparados, dentre os quais o “tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas,
marca o início da edição de leis de emergência ou de exceção após a
redemocratização do Brasil; a Lei 9.034/95, que, inspirada pelo pretexto de
repressão à “criminalidade organizada”, naturalmente, nem em sua versão
original, nem com as modificações introduzidas pela Lei 10.217/01, conseguiu
explicitar o que seja tal indefinível fenômeno; a Lei 9.296/96, que veio
regulamentar a interceptação de comunicações telefônicas e em sistemas de
informática e telemática; a Lei 9.613/98, que veio criminalizar a chamada
lavagem (ou branqueamento) de capitais.
Este movimento político, jurídico, militar e
midiático prossegue em seu discurso de “endurecimento penal” também com a Lei
11.343/2006 que agrava as penas para o tráfico, fixando a pena mínima em 5
(cinco) anos de prisão. Esta mesma legislação, que chegou a ser apontada como
“moderna” pelos desavisados, estabeleceu circunstâncias agravantes (uso de
arma, venda nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino
ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais,
recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de
recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de
serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de
unidades militares ou policiais ou em transportes públicos)
que aumentam a pena de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços).
Karan
(2010) chama a atenção para outra característica da legislação anti-drogas, a
“antecipação do momento criminalizador”:
Essa antecipação se
revela no abandono das fronteiras entre consumação e tentativa, com a
tipificação autônoma (isto é, a previsão na lei como crime) da posse, do
transporte ou da expedição das substâncias ou matérias primas proibidas.
Possuir, transportar ou expedir são condutas que constituem apenas um começo da
execução da venda ou de qualquer outra forma de fornecimento, que caracterizam
propriamente o “tráfico”. Pense-se, por exemplo, no caso de um crime de
homicídio por envenenamento, em que o oferecimento da bebida com o veneno é
apenas um começo da execução da proibida conduta de matar. Se alguém é
surpreendido entregando o copo e, assim, é interrompido em sua ação e não
consegue que a vítima efetivamente tome a bebida envenenada e morra, será
punido, como prevê a legislação penal regular (o Código Penal), apenas pela
tentativa, tendo assim a pena reduzida entre um a dois terços. A pena mínima do
homicídio consumado é de seis anos de reclusão. Essa pena mínima para quem tentou
matar, mas não conseguiu, será reduzida para, pelo menos, quatro anos. No caso
do “tráfico”, não. Tanto a posse, o transporte ou a expedição, quanto o efetivo
fornecimento ou venda serão punidos com a mesma pena (....) A criminalização
antecipada contraria – e, portanto, viola – o princípio da exigência de
lesividade (ou ofensividade) da conduta proibida, segundo o qual uma conduta só
pode ser objeto de criminalização quando direta, imediata e significativamente
afete um bem jurídico relacionado ou relacionável a direitos individuais
concretos
O
rigor penal em vigor no Brasil quanto ao tráfico de drogas envolve, ainda, a
possibilidade do abate de aeronave (artigos 1º, 2º e 3º do artigo 303 da Lei
7.565/86, com as modificações introduzidas pela Lei 9.614/98, regulamentada
pelo Decreto 5.144/04), que introduziu a pena de morte fora de período de
guerra, ou seja, fora da exceção prevista pela Constituição Federal. Ele é notável, também, na vedação imposta
pela Constituição Federal de fiança, graça e anistia ao crime de tráfico (C.F.
art. 5º, inciso XLIII), na impossibilidade de concessão de indulto, de
suspensão condicional da pena de prisão (sursis) e de substituição por pena
restritiva de direito, na vedação da concessão da liberdade provisória [6]
e nos prazos diferenciados para a obtenção de benefícios na execução penal.
Neste particular, é importante lembrar que a Lei dos Crimes Hediondos vedava a
progressão de regime, o que foi considerado inconstitucional pelo STF, ainda
que com quase duas décadas de atraso.
Este percurso de
criminalização do tráfico e do consumo de drogas não produziu qualquer
resultado positivo. Décadas de proibicionismo no Brasil só conseguiram produzir
uma enorme massa carcerária, uma corrupção crescente em várias esferas da
atividade pública, especialmente nas polícias, e uma infinita sequência de
violações de direitos. A repressão, as leis excepcionais, o alarma social, as
penas rigorosas e tudo o mais não diminuíram o consumo de drogas nem reduziram
sua oferta. Pelo contrário, elas
alimentaram o mercado ilegal, estimularam lucros impressionantes e produziram
um grave problema de segurança pública posto que o tráfico é, em si mesmo,
muito mais danoso do que os efeitos de todas as drogas somadas. Mas, incrivelmente, quando debatemos sobre
qual a política pública mais eficiente para a redução do número de dependentes
químicos, ou quando discutimos sobre as formas mais adequadas de enfrentamento
ao tráfico de drogas tornadas ilícitas, seguimos imaginando no Brasil que o
caminho a ser percorrido envolve doses maiores do mesmo remédio que tem sido
ministrado até hoje: a manutenção da política proibicionista, os esforços na
repressão ao tráfico e a aposta em tratamentos centrados na abstinência.
Esta tríade, aliás,
tem estruturado as políticas públicas sobre drogas no Brasil desde sempre. O
que se pode afirmar com segurança a respeito da conjugação destes elementos
(proibicionismo + repressão + abstinência) - que consagra o modelo criminal
medicalizante em vigor no Brasil - é que ela assinala opção de altíssimo custo
econômico e social e baixíssima resolutividade. Mais grave do que isso: vários
estudos têm sugerido que políticas públicas fundadas nestes elementos não
apenas são incapazes de oferecer uma resposta satisfatória para os problemas
que pretendem enfrentar, como são – elas mesmas – parte do problema a ser
superado, vez que seus efeitos são largamente contraproducentes.
O projeto de Lei nº
7663/2010, de autoria do deputado Osmar Terra (PMDB/RS), possui pelo menos um
mérito: ele reúne em um mesmo texto todos os equívocos e todas as ilusões de
nossa história no que diz respeito às políticas públicas para drogas. A
eventual aprovação desta proposição, por conseqüência, potencializará os
efeitos perversos das abordagens tradicionais e conservadoras na área,
aumentando o número de prisões e o tempo de privação da liberdade, aumentando
as possibilidades de condenações de usuários como se traficantes fossem,
degradando ainda mais as condições já inaceitáveis de execução penal no Brasil,
criando uma indústria de internações compulsórias, regredindo nas iniciativas
de redução de danos, aumentando de forma exponencial a despesa pública e
violando os direitos elementares de pessoas em situação de fragilidade social.
Para evitar este
desastre, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), em esforço interdisciplinar,
elaborou este parecer. As afirmações aqui expostas e os dados oferecidos ao
debate possuem suas respectivas referências acadêmicas, de tal modo que os
interessados possam checar as informações nos estudos originais. Nesta discussão, como em tantas outras, não é
possível que as opções de políticas públicas sejam estruturadas pelo
preconceito, pelas visões moralistas e/ou religiosas ou pela conhecida disposição
de mascarar interesses comerciais e eleitorais com afirmações que não se
sustentam tecnicamente. O Brasil já pagou um preço muito elevado pela
incompetência, pela demagogia e pela mentira. É hora de tratar dos temas da
saúde pública e da segurança com a devida seriedade. Senão por outro motivo,
porque posições erradas nestas áreas costumam matar.
II.
Sobre a promessa dissuasória do direito penal e suas ilusões
Tornou-se comum
afirmar que convivemos com altas taxas de impunidade e que os autores de
delitos – em grande parte, pelo menos - terminam não sendo sequer processados.
É preciso, entretanto, olhar com cuidado para este fenômeno, de tal modo que
seja possível compreendê-lo efetivamente.
Em primeiro lugar,
assinale-se que a grande maioria dos crimes cometidos não é punida em todo o mundo.
Isto ocorre porque, diferentemente do que imagina o senso comum, crimes são
atos que não dizem respeito apenas àqueles que constroem carreiras criminais.
Crimes dizem respeito à agência humana. Quase todas as pessoas - inclusive
aquelas exemplares em sua conduta como cidadãs – costumam transgredir certas
normas legais em determinados momentos de suas vidas, destacadamente na
adolescência e quando jovens adultos.
Sabemos disso desde os anos 40 quando estudos de auto-relato (self-report studies), onde
se oferece aos entrevistados garantia absoluta de anonimato, passaram a encontrar quase 100% de respostas positivas para “pelo menos
um crime em minha vida”. Porterfield
(1943, 1946), um dos pioneiros nestes estudos, examinou os registros criminais
de 2.049 jovens julgados
em Fort Worth, Texas, identificando 55 tipos diversos de crimes pelos quais os
mesmos foram acusados. Depois disso, ele entrevistou 200 jovens do sexo
masculino e 137 do sexo feminino, de três faculdades do norte do Texas, para
descobrir se e em que freqüência aqueles estudantes – que jamais haviam sido
conduzidos à Justiça – haviam praticado algum daqueles 55 delitos. Encontrou,
então, que todos os entrevistados haviam cometido, pelo menos, um dos
crimes listados. Os crimes cometidos pelo grupo de estudantes entrevistados
eram tão sérios quanto os demais cometidos pelos chamados “delinquentes” -
ainda que praticados com menor frequência -, mas apenas alguns poucos
estudantes haviam estado em contato com uma autoridade legal por conta deles. Inspirados por este trabalho, Wallersteins e
Wylie (1947) desenvolveram uma pesquisa similar com 1.698 adultos – homens e
mulheres – a respeito de crimes eventualmente praticados por eles até os 16
anos. Usaram para isso uma listagem com 49 tipos penais. Quase todos os
entrevistados relataram haver cometido pelo menos um dos crimes listados, sendo
que 64% dos homens e 29% das mulheres confirmaram a prática de, pelo menos, um
delito grave com uso de violência.
Rolim
(2006) observa que estudos posteriores demonstraram que, em que pese a grande
maioria dos jovens estar comumente envolvida com algum tipo de atividade
ilegal, apenas alguns poucos entre eles cometem crimes sérios repetidas vezes.
Gold (1966), por exemplo, encontrou um percentual de 88% de respostas
afirmativas para um ou mais delitos, mas apenas 6% dos meninos e nenhuma das
meninas no grupo que ele estudou haviam praticado assalto à mão armada. Segundo
a ampla revisão de Thornberry e Krohn (2000) esses estudos comprovaram a
inexistência de correlação significativa entre os relatos positivos para crime
e a origem social dos jovens. Muitos outros trabalhos como o de Anderson et al (1994) e Grahan and Bowling (1995) chegaram à mesma
conclusão. O que esses pesquisadores descobriram foi que adolescentes de classe
média tinham tantas probabilidades de se envolver em crimes quanto adolescentes
de famílias pobres. Esta conclusão contrasta radicalmente com os dados
estatísticos produzidos pelos registros policiais, onde a quantidade de jovens
de classe média envolvidos na prática de atos infracionais é sempre inferior ao
seu peso social quando comparada ao número de registros envolvendo jovens
pobres. Reforça-se assim a idéia de que as estatísticas policiais oferecem,
menos do que um “retrato do crime”, um retrato da própria forma como a polícia
trabalha.
Estima-se o número de
pessoas que praticaram crimes e que não foram punidas a partir das chamadas
“taxas de atrito”. Os cálculos são feitos levando-se em conta o total de
indiciamentos realizados pela polícia ou a partir dos dados apurados em
pesquisas de vitimização. Com este recurso, temos retrato mais fiel, vez que a
maioria dos crimes – inclusive dos crimes violentos – não são comunicados às
polícias.[7] Nos
Estados Unidos, por exemplo, apenas 3% dos crimes violentos se traduzem em
sentenças de prisão, o que não deixa de ser surpreendente tendo em vista as
altíssimas taxas de encarceramento lá praticadas.[8]
Não sabemos, ao certo, qual é a “taxa de atrito” no Brasil, mas podemos
imaginar que as circunstâncias sejam mais sérias. Pesquisa realizada por Soares
et al (1996:259), no estado do Rio de Janeiro, demonstrou que apenas 8%
dos homicídios praticados resultavam em processos encaminhados ao Judiciário, o
que assinala intolerável margem de impunidade.
Dados apresentados por Khan (2001:36), sobre o desempenho do sistema de justiça
criminal do estado de São Paulo, no segundo trimestre de 1999, apontam para um
total de crimes estimados por pesquisa de vitimização de 1.330.434. No mesmo
período, o índice oficial de criminalidade (com base em boletins de ocorrência)
foi cerca de 33% desse total (443.478 crimes). Em resposta aos quais foram
instalados 86.203 inquéritos policiais (6,4% do total) e efetuadas 29.807
prisões o que perfaz 2,2% do total de crimes estimado para o período.
Normalmente, se imagina
que o fenômeno da impunidade seja causado por debilidades na legislação
criminal. O que ocorre, entretanto, é algo completamente distinto. Embora a lei
penal – destacadamente a lei processual penal – possa responder por
determinadas dificuldades como, por exemplo, quando oferece possibilidades
irrazoáveis de recursos, o que termina sendo funcional à prescrição, o fenômeno
da impunidade está muito mais fortemente associado às debilidades da prova
colhida. Alterações na legislação penal, por isso mesmo, pouco efeito produzem
nas taxas de impunidade. A depender da lei penal, teremos mais ou menos pessoas
presas, por mais ou menos tempo, mas, se quisermos diminuir as taxas de
impunidade, será preciso aperfeiçoar as condições de investigação criminal - o
que demandaria repensar o modelo burocrático e ineficiente dos inquéritos
policiais; melhorar a inteligência policial e dotar as perícias técnicas dos
recursos necessários à produção de prova mais qualificada. O tema da impunidade,
em síntese, tem muito a ver com a qualidade da investigação e pouco com a lei
penal.
Por fim, é preciso
lembrar que o fenômeno da impunidade, especialmente em países como o Brasil,
está muito presente entre os crimes praticados pelas elites, inclusive entre as
elites políticas. Em meio aos pobres, pelo contrário, as condenações costumam
ocorrer com elevada frequência e rapidez. Rezende (2011), por exemplo,
demonstra que, no Distrito Federal, os réus processados por tráfico de drogas
foram condenados em 85,5% das vezes, sem registro de um só caso de prescrição
no universo pesquisado - o que evidencia a rapidez e a extensão da resposta
punitiva.
Com base nos últimos
dados disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do
Ministério da Justiça, o Brasil havia alcançado o número de 549.577 presos em junho de 2012[9],
o que nos assegurava uma taxa de encarceramento de 288,14 presos para cada 100
mil habitantes, uma das mais altas do mundo. Incrivelmente, o delito que
responde isoladamente pelo maior número de condenados no Brasil é o tráfico de
drogas, com 26,34% da massa carcerária. Para que se tenha uma ideia do
significado deste percentual, bastaria lembrar que os condenados por latrocínio
no Brasil são 2,9% do total de presos; os condenados por homicídio simples,
5,1%; os condenados por estupro, 2,4%; os condenados por corrupção ativa, 0,1%
e os condenados por tortura, 0,03% da massa carcerária. O tipo penal que ocupa
o segundo lugar entre os condenados no Brasil é o roubo qualificado, com 18,5%
do total; muito atrás da quantidade de presos por tráfico. Lembrando que
falamos aqui da média nacional. Em alguns estados da federação, os condenados
por tráfico já são mais de 1/3 do total de presos.
Observe-se que o encarceramento em massa de pessoas
condenadas por tráfico no Brasil cresceu de maneira extraordinária – para além
da curva histórica - após a vigência da nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006)
que, em seu artigo 28, descarcerizou[10]
o porte para consumo pessoal. O fenômeno sugere, assim, a possibilidade de
“migração institucional”. Ou seja, é possível que o notável aumento no número
de prisões por tráfico corresponda a uma resistência, tanto dos policiais
quanto dos promotores e magistrados, e que muitas pessoas detidas na posse de
drogas para uso pessoal – antes punidas pelo artigo 16 da antiga lei – tenham
passado a ser enquadradas e sentenciadas como se traficantes fossem. Como o
observa Rezende (2011), muitos magistrados recebem acriticamente a afirmação
feita pelos policiais que efetuaram a prisão de que “a droga foi encontrada em poder do acusado, em local notoriamente
conhecido como boca de fumo”, sem se dar conta de que estes locais
“notórios” são também frequentados por consumidores[11].
Para que o problema fosse solucionado, seria
preciso que a lei de drogas no Brasil estabelecesse o que Carvalho (2007:218)
chama de “cláusula de barreira”, vale dizer: um limite objetivo dentro do qual
o porte da substância ilícita seria irrelevante para o direito penal. Esta tem
sido, aliás, a solução empregada - formal ou informalmente - por vários países.
Na Espanha, por exemplo, a posse de até 50g de haxixe não configura crime. A
posse de 50g a um kg de haxixe, considerada “moderada”, caracteriza o delito de
“tráfico simples”; a posse de mais de 1 kg até 2,5 kg é considerada “quantidade
de notória importância” e configura tráfico com punição agravada; por fim, a
posse de “quantidade expressiva”, mais de 2,5 kg de haxixe, assinala o “tráfico
qualificado”[12].
Uma solução do tipo seria ainda muito mais
necessária no Brasil onde a Lei penal, como observa Carvalho[13],
fez com que as cinco condutas previstas
como "porte" no artigo 28 (adquirir, guardar, trazer consigo, ter em
depósito e transportar) estejam igualmente presentes no art. 33, que trata do
tráfico. Assim, a lei prevê para
condutas idênticas duas qualificações distintas - uso e tráfico, o que, por
óbvio, potencializa o arbítrio.
No caso concreto, o legislador optou por um cheque em branco ao
assinalar que o juiz deverá considerar “a
quantidade, o local e as condições da infração, e as circunstâncias sociais,
pessoais e também a conduta do agente” (artigos 28, §2º e 42 da Lei
11.343/2006). É exatamente na avaliação subjetiva destas circunstâncias,
assinale-se, que um eventual consumidor das classes médias e altas da
sociedade, flagrado com 50g de maconha, será imediatamente identificado como
“usuário”, enquanto um jovem negro, morador da periferia, flagrado com a mesma
quantidade da droga, será, quase sempre, identificado como “traficante”. Os indicadores
disponíveis e as pesquisas no Brasil sugerem exatamente isso. Um estudo de
2009, que examinou as prisões por tráfico no Rio de Janeiro e em Brasília,
mostrou que a maioria dos acusados como traficantes é formada por réus
primários e pobres e que somente 16,8% deles são reincidentes[14].
São mais de 80% de primários nas varas federais do Rio de Janeiro. Ou seja, é
cada vez mais difícil que as prisões sejam resultados de investigações
policiais. As prisões são feitas quase sempre em flagrante e os “traficantes”
presos são, como regra, aqueles que estão na ponta deste enorme e complexo
negócio. São, efetivamente, os camelôs do tráfico. São jovens, pobres, moram
nas periferias urbanas e encontram na venda de drogas tornadas ilícitas um meio
de sobrevivência. Os verdadeiros donos deste negócio – o mais lucrativo do
mundo – não moram em favelas e não são, como regra, sequer investigados.
Independentemente da hipótese da “migração institucional” – que só
poderia ser comprovada por estudos específicos - os números oficiais demonstram
que o Brasil tem efetuado prisões e condenado uma impressionante quantidade de
pessoas por tráfico de drogas como nunca em sua história. Qual o efeito destas
prisões? Por acaso se tem notícia de redução do consumo de drogas ilícitas no
Brasil ou de diminuição de quantidades de drogas comercializadas?
O fato de mandarmos para a prisão dezenas de milhares de jovens por
tráfico todos os anos, na verdade, não produz qualquer efeito inibitório ao
negócio ilegal da venda de drogas, apenas renova o exército de jovens pobres
envolvidos, vez que a demanda se mantém pujante. Mas os condenados por tráfico - “crime
hediondo” segundo a lei brasileira - cumprirão penas mais longas. Terão, também,
depois de cumpridas suas penas, as piores condições para a reinserção social
por conta do estigma que é particularmente pronunciado contra “traficantes”[15]. O resultado é que o aumento do número de
prisões por tráfico agencia novas oportunidades criminogênicas, operando,
concretamente, como um dos fatores mais importantes na organização de
quadrilhas e facções criminais dentro dos presídios.
Uma legislação moderna que seja capaz de estimular políticas públicas
exitosas com relação às drogas deveria partir da constatação de que a promessa
dissuasória do direito penal se revelou, historicamente, uma ilusão e que, no
caso das drogas, a aposta em favor da repressão assinala um dos fracassos mais
retumbantes de que se tem notícia, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.
III.
Sobre a proposta de aumentar as penas para os
traficantes e para os usuários de drogas
O PL nº 7663/2010 pretende alterar as penas
previstas para o tráfico de drogas e também para o uso de drogas ilícitas. A
lei atual prevê em seu artigo 28 o seguinte:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em
depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa
ou curso educativo.
§ 1o Às mesmas medidas
submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas
destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de
causar dependência física ou psíquica.
§ 2o Para determinar se a
droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade
da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação,
às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do
agente.
§ 3o As penas previstas nos
incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5
(cinco) meses.
§ 4o Em caso de
reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo
serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5o A prestação de
serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades
educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos
ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção
do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6o Para garantia do
cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e
III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo,
sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7o O juiz determinará ao
Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente,
estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento
especializado.
Diante desta norma, o PL nº 7663/2010 estabelece
que:
Art. 12. O art. 28 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de
2006 passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 28. ...............................................................................
III -
......................................................................................
§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste
artigo serão aplicadas pelo prazo de 6 (seis) a 12 (doze) meses.
§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos
incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo de 12 (doze)
a 24 (vinte e quatro) meses.
.............................................................................................
§ 6º
.....................................................................................
III – restrição de direitos relativos à frequência a
determinados lugares ou imposição ao cumprimento de horários.
§ 8º Em qualquer das hipóteses previstas nos incisos do caput
deste artigo, o Poder Público está obrigado a acompanhar o desenvolvimento,
registrar o cumprimento e avaliar o progresso do usuário ou dependente de
drogas nas atividades atribuídas, de acordo com o seguinte:
I – a sentença judicial designará um responsável por
acompanhar o desenvolvimento das atividades pelo usuário ou dependente de
drogas; e
II – o juiz competente será informado pelo responsável
pelo plano de atendimento individual acerca da avaliação do progresso realizado
no cumprimento das atividades do programa, com sugestões sobre ações futuras,
se for o caso.” (NR)
Assim, a previsão legal de condenação dos usuários
à prestação de serviços à comunidade e à medida educativa de comparecimento a
programa ou curso educativo pelo prazo máximo de cinco meses e, em caso de
reincidência, pelo prazo máximo de dez meses, terá estes prazos
aumentados. O PL aumenta em um mês o
tempo de prestação de serviços à comunidade e em sete meses o tempo de frequência
a programas ou cursos educativos. No
caso de reincidência, estes prazos são dobrados para 12 e 24 meses,
respectivamente.
As razões para as alterações propostas não foram
mencionadas pelo autor. Talvez pela simples razão de que inexistem. Trata-se,
apenas, de criar dificuldade extra e constrangimento maior aos usuários
adultos, para quem o Estado brasileiro não reconhece a liberdade de escolha dos
produtos que desejam consumir, ainda que desta escolha só possa decorrer mal a
eles próprios. A medida é completamente desarrazoada. Obrigar um jovem de 18
anos que faz uso recreativo de maconha à frequência de curso de prevenção ao
consumo de drogas e imaginar que isto possa acarretar efeito positivo revela
apenas elevado grau de desconhecimento sobre o que é a juventude, sobre quais
são suas reações diante de medidas desta natureza e sobre o quanto os jovens
sentem-se desrespeitados e agredidos por esta pretensão “educativa” que, aliás,
nunca foi avaliada no Brasil.
A preocupação de obrigar adultos usuários, que não
são sequer dependentes, a frequentar cursos ou prestar serviços à comunidade
contrasta com a inação frente a outros temas que representam perigos efetivos à
saúde pública como a compra e o emprego descontrolado de produtos agrotóxicos
banidos em vários países e que podem causar danos graves à saúde de milhões de
pessoas; a prescrição disseminada de drogas sintéticas vendidas por grandes
laboratórios e que podem causar séria dependência, além de graves efeitos
colaterais; a medicação massiva e inexplicável de crianças diagnosticadas como
portadoras de Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade (TDAH)[16] e o estímulo à venda de bebidas alcoólicas, ao ponto
da suspensão da vigência de leis que a proibiam nos estádios de futebol para
atender aos interesses dos patrocinadores da próxima Copa do Mundo, para
lembrar apenas alguns exemplos.
Observe-se que o mesmo artigo 12 do PL nº 7663/2010
introduz nova penalidade aos usuários: a proposição de um inciso III para o parágrafo 6º do art. 28 da Lei 11.343
estabelece a possibilidade da “restrição
de direitos relativos à frequência a determinados lugares ou imposição ao
cumprimento de horários”.
Além disto, cria um § 8º na Lei 11.343, estabelecendo a obrigação do
Poder Público de “acompanhar o
desenvolvimento, registrar o cumprimento e avaliar o progresso do usuário ou
dependente de drogas nas atividades atribuídas”. Pela proposta, a sentença
judicial deverá designar um responsável pelo acompanhamento “das atividades (desenvolvidas) pelo usuário
ou dependente de drogas”. A proposta prevê, ainda, que o “Juiz competente” seja informado sobre “o progresso realizado no cumprimento das
atividades do programa, com sugestões sobre ações futuras, se for o caso”.
Pela proposta, os usuários adultos de drogas,
mesmo que não sejam dependentes, devem ser submetidos à medida de
comparecimento a programa ou curso educativo, a depender da situação por até
dois anos. Considerando que o Brasil
possui pelo menos oito milhões de consumidores de maconha (três milhões deles
consumidores frequentes)[17]
e quase outros três milhões de usuários de cocaína, crack e oxi[18],
pode-se afirmar que o universo de consumidores de drogas ilegais no Brasil é
superior a 11 milhões de jovens e adultos, podendo ultrapassar em muito esta
marca se levarmos em conta o uso de todas as drogas ilegais e a subnotificação
nas pesquisas de consumidores eventuais. Se a política pública a ser construída
no Brasil tiver como meta a abordagem de todos os usuários, como pretende o PL nº
7663/2010, então estaremos diante de uma insanidade sem precedentes.
Primeiro, por óbvio, não haverá recursos para
estruturar cursos para milhões de pessoas, nem para prolongar o funcionamento
de cada um deles por até 24 meses como estabelece o PL e, tampouco, para montar
equipes com os milhares de profissionais que serão necessários para o
acompanhamento destes milhões de usuários.
Ainda que o Brasil pudesse investir bilhões de reais na montagem destas
primeiras estruturas propostas pelo PL nº 7663/2010 seria um absurdo fazê-lo,
senão por outra razão, porque a projeção utópica de um mundo sem usuários de
drogas é irreal e ingênua. Em todas as sociedades conhecidas, sempre se
verificou o uso de substâncias psicoativas
que alteram o senso de percepção e o estado de
vigília das pessoas, mesmo em comunidades
pré-históricas (ESCOHOTADO, 2004). Qualquer pessoa tem o direito de imaginar um
mundo sem drogas, mas não se pode permitir que o País seja submetido a metas
irrealizáveis, potencialmente violadoras de garantias individuais, e que serão
nova e prodigiosa fonte para o desperdício de recursos públicos.
O PL 7663/2010 estabelece também um aumento nas
penas cominadas para os condenados por tráfico de drogas. A lei de drogas em
vigor dispõe que:
Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37
desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:
I - a natureza, a procedência da substância ou do
produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a
transnacionalidade do delito;
II - o agente praticar o crime prevalecendo-se de
função pública ou no desempenho de missão de educação, poder familiar, guarda
ou vigilância;
III - a infração tiver sido cometida nas
dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou
hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais,
recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de
recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de
serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de
unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;
IV - o crime tiver sido praticado com violência,
grave ameaça, emprego de arma de fogo, ou qualquer processo de intimidação
difusa ou coletiva;
V - caracterizado o tráfico entre Estados da
Federação ou entre estes e o Distrito Federal;
VI - sua prática envolver ou visar a atingir
criança ou adolescente ou a quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou
suprimida a capacidade de entendimento e determinação;
VII - o agente financiar ou custear a prática do
crime.
Este conjunto de circunstâncias qualificadoras já é
tão amplo que, na prática, quase todos os condenados por tráfico poderão ter
suas penas agravadas em até 2/3 (dois terços), bastando para isso que no
cálculo da dosimetria tenhamos juízes com a mesma disposição do autor do PL nº
7663/2010. Por conta de dispositivos como estes – já previstos na Lei 11.343/06
- as penas impostas aos condenados por tráfico podem ultrapassar – e de fato
isto tem ocorrido com freqüência – as penas impostas aos condenados por
homicídio simples. A incompreensão sobre estes temas conduziram o Brasil a uma
situação onde vender substâncias tornadas ilegais pode constituir ação mais
reprovável do que matar alguém. Mas o PL nº 7663/2010 pretende radicalizar esta
desproporção ao propor que:
Art. 13. Inclua-se o seguinte art. 39-A na Lei nº 11.343,
de 23 de agosto de 2006:
“Art. 39-A. Revelar ou permitir o acesso à informação
sobre usuário ou dependente de drogas a pessoa não autorizada ou quebrar o
dever de sigilo.
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.”
Art. 14. Acrescentem-se os seguintes incisos VIII e IX ao
art. 40 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006:
“Art. 40.
...............................................................................
.............................................................................................
VIII – o crime envolve drogas de alto poder de causar
dependência, de acordo com a classificação prevista na alínea “c” do inciso I,
do parágrafo único, do art. 1º desta Lei; e
IX – o crime envolve a mistura de drogas como forma de
aumentar a capacidade de causar dependência.” (NR)
Para que se
entenda o que o autor está propondo: o PL nº 7663/2010 prevê, em seu artigo 1º, a elaboração, “por lei ou
pelo Poder Executivo”, de uma lista de drogas proibidas com uma escala a
respeito da capacidade de cada uma delas “causar dependência”[19]. Haverá, no mínimo, uma escala com três
categorias: “baixa, média e alta”. Com base nesta proposição, o PL apresenta
duas novas circunstâncias qualificadoras do crime que darão razão para o
aumento da pena de um sexto a dois terços.
Assim, aquele
que “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar,
adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer
consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas,
ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal
ou regulamentar” ou, ainda, aquele que “importa, exporta, remete, produz,
fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito,
transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou
produto químico destinado à preparação de drogas”, ou ainda aquele que “semeia,
cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a
preparação de drogas”, ou, ainda aquele que “utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade,
posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se
utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas”, terá
sua pena agravada de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços) caso a droga seja
considerada de “alta capacidade de causar dependência”.
A este respeito, importa lembrar que a
classificação de drogas de acordo com o critério proposto pelo PL é de difícil
aplicação por conta da inexistência de consenso científico a respeito do tema.
Além disto, há a possibilidade da norma produzir efeito diverso do pretendido,
estimulando a manipulação de substâncias e o surgimento de novas drogas. Nota
técnica do Ministério da Saúde, aliás, destaca estas dificuldades:
Ineficaz sob os
pontos de vista científico e jurídico, a classificação poderia resultar ainda,
caso fosse aplicada, na manipulação de substâncias para fins de burlar a
legislação, incentivando a criação de novas drogas. Tais situações já se
constituem como grave problema de saúde pública em alguns países, como
Inglaterra e Estados Unidos, onde ocorre a dispersão de combinações “legais”
que produzem efeitos extremamente nocivos à saúde (World Drug Report-Onu,
2011, http://abr.io/2Dfg - Synthetic Cannabinoids and Spice - European
Monitoring Centre, 2009, http://abr.io/2Dfi).[20]
O Brasil tem um ótimo exemplo a respeito de enfrentamento de dependência
química. Por qualquer critério que se
queira avaliar esta experiência, ela será sempre um exemplo de sucesso. Estamos
falando da dependência química produzida pela nicotina. Para Laranjeira e Gigliotti [21] “trata-se de problema tão virulento
que embora 70% dos fumantes desejem parar de fumar, apenas 5 % destes conseguem
fazê-lo por si mesmos”. No mais, o hábito de fumar está associado a
uma extensa lista de doenças graves, especialmente à ocorrência de vários tipos
de câncer e ao enfisema pulmonar, sendo que a OMS estima que três milhões de
pessoas morram a cada ano, por doenças relacionadas ao tabagismo.
Este, não obstante, é um tema difícil para os proibicionistas por, pelo
menos, duas razões: primeiro porque, em que pese os malefícios do tabagismo, a
droga é legal em todo o mundo e os adeptos das políticas proibicionistas não
estão propondo tornar o tabaco ilegal. Segundo, porque o Brasil e muitas outras
nações têm alcançado índices impressionantes de redução do tabagismo com
políticas públicas voltadas fundamentalmente para a prevenção e para a
regulação restritiva do consumo. O fenômeno
tem ocorrido inclusive nos Estados Unidos que já tiveram quase 42% de fumantes,
um percentual que contrasta com os atuais 24%[22]
de usuários de tabaco. No Brasil, cerca de 35% da população adulta era fumante
em 1989. Hoje, os fumantes brasileiros são 15,2%.
Reduzimos
em mais de 50% o número de fumantes em um espaço de 20 anos, sem qualquer
contribuição do direito penal, sem prisões, sem leis excepcionais, sem alarma
social. Como conseguimos isto? Proibindo a propaganda nos meios de comunicação
social; obrigando as empresas a colocar anúncios de advertência nas carteiras
de cigarros; limitando os ambientes de uso; resguardando os espaços fechados e
desestimulando o consumo. Especialmente, apostamos na formação de uma cultura
de prevenção com relação ao tabaco. Os resultados são impressionantes e o serão
ainda mais se tivermos a determinação de avançar nessa política, enfrentando os
interesses das fumageiras.
Como costuma ocorrer na tradição política
brasileira, entretanto, o PL nº 7663/2010 desconsidera
a experiência mais amplamente exitosa que já construímos de enfrentamento à
dependência química[23] e se dedica a reforçar a experiência mais amplamente fracassada. A proposição em favor do aumento das penas para
“traficantes” assinala o compromisso do PL com um passado de erros e expressa
aquilo que Pratt (2001) chamou de “nova punitividade” e que Simon (2000)
identificou como a “era do hiperencarceramento”. Para o senso comum, o crime é
concebido como um problema sempre de maior gravidade – independentemente do
crescimento ou da queda real da violência, o que gera um clima de estado de
emergência onde “medidas extraordinárias” precisam ser tomadas para defender a
sociedade de “ameaças extraordinárias” (HOGG and BROWN, 1998:4).
Assinale-se que a Câmara dos Deputados, em votação
simbólica (com o voto apenas dos líderes), aprovou em 8 de agosto de 2012,
substitutivo da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado ao
PL 5444/09, de autoria do deputado Paulo Pimenta (PT/RS), que aumenta as penas de
2/3 (dois terços) até o dobro para o tráfico de crack. O mesmo aumento também valerá
para quem induzir,
instigar ou auxiliar alguém ao uso de crack.[24] Como a pena para tráfico prevista na Lei 11.343 é a
de reclusão de 5 (cinco) a 15
(quinze) anos, o Brasil poderá ter, em
breve, uma legislação que punirá o tráfico de drogas com penas de até 30
(trinta) anos de prisão. Na mesma linha, Projeto de Lei do ex-senador
Demóstenes Torres (PLS 111/2011) prevê a prisão para usuários de drogas e
também a internação compulsória[25]. A
histeria penal, como se percebe, não escolhe legendas. Para ela, basta
determinado perfil parlamentar. A ilusão compartilhada aqui é a de que os
traficantes seriam “desestimulados” a lidar com o crack já que as penas
passariam a ser muito graves. Ocorre
que, como o observou Cesare Beccaria no clássico “Dos Delitos e das Penas” (Dei Delitti e delle Pene), não é a severidade da pena que pode desencorajar
o ato delituoso, mas a certeza da punição. "A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causará sempre
uma impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em
relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade". É
o que ocorre. Alguém disposto a cometer um ilícito não deixará de praticá-lo
por conta da gravidade da pena cominada. O que poderá desencorajá-lo são os
riscos reais de identificação, mesmo que a pena seja moderada. A propósito, o livro de Beccaria é de 1764.
O que as
medidas preconizadas por Terra, Pimenta e Demóstenes irão assegurar, sem qualquer
dúvida, é uma nova onda de encarceramento no Brasil que atingirá, basicamente,
jovens pobres das periferias urbanas, pequenos traficantes e usuários de crack.
Aqueles que não podem pagar pedágio aos policiais corruptos; aqueles que não
podem frequentar baladas onde se consome Ecstasy com segurança privada; aqueles
que precisam de apoio psicossocial e de oportunidades de emprego e estudo. Para
estes, apontamos um futuro de até 30 (trinta) anos de prisão.
A receita repressiva, entretanto, não se sustenta
mais sequer nos EUA. Como é sabido, a
“Guerra contra as Drogas” (War on Drugs),
declarada desde o governo Nixon, produziu a maior população carcerária do mundo
e conduziu a sociedade americana a um conjunto de dilemas. Para que se tenha
uma ideia do que ocorreu nos EUA, é preciso lembrar que, entre 1970 e 2006,
foram efetuadas 39 milhões de prisões por tráfico ou uso de drogas em casos
onde não se verificou conduta violenta dos acusados[26].
Nos países europeus, as taxas médias de encarceramento estão abaixo de 150 para
cada 100 mil pessoas. Já nos Estados Unidos, as taxas são de 1.009 presos para
cada 100 mil pessoas. Além desta enorme diferença, a experiência de
encarceramento nos EUA possui um claro sentido racista. 72% dos usuários de
drogas naquele país são brancos. Entretanto, 80% dos presos federais e 60% dos
presos estaduais por crimes de drogas são negros. Em média, pelos mesmos
crimes, negros passam seis anos presos e brancos, quatro anos. Nove em cada 10
presos por drogas nos Estados Unidos são negros ou latinos. A maioria nunca
mais poderá votar, mesmo após o cumprimento das penas. Os dados são
impactantes. Na África do Sul, em 1993, em pleno regime de apartheid, havia uma taxa de 851 negros presos para cada 100 mil
habitantes. Nos Estados Unidos, em 2008, a taxa era de 6.667 presos negros para
cada 100 mil habitantes. Hoje, os Estados Unidos possuem cerca de 4,6% da
população mundial e 22,5% dos presos do mundo. Se o consumo e a venda de drogas
fossem considerados irrelevantes para o direito penal norte-americano, isso
seria traduzido em quase dois milhões de prisões a menos a cada ano, com uma
economia anual de US$ 70 bilhões (ROBINSON and SCHERLEN, 2007:94).
Por isso, para limitar o número de pessoas
encaminhadas à prisão por violações à lei de drogas, vários estados americanos
têm implementado programas alternativos ao encarceramento. Em 2009, Nova Iorque
reformou sua lei de drogas, incluindo penas alternativas à prisão para pequenos
vendedores (DRUG POLICE ALLIANCE, 2009). Na Califórnia, praticamente não se
condena mais à prisão por ofensas menores à lei de drogas e na Carolina do Sul
e em Oklahoma se pretende reduzir a população carcerária alterando as
respectivas leis de drogas. Em 2010, o estado do Colorado reduziu as penas para
pequenas quantidades de drogas e New Jersey permitiu que os magistrados
evitassem as sentenças com “penas fechadas”, sem possibilidade de benefícios (mandatory minimum sentences), para
violações menores da lei de drogas. No âmbito federal, as penas
desproporcionais para crack e cocaína foram reduzidas (THE PEW CHARITABLE TRUSTS, 2013).
Nos países europeus, observa-se, desde há muitos anos, políticas públicas
mais centradas na prevenção e, progressivamente, menos orientadas pelo
proibicionismo, com a exceção da experiência sueca que, entretanto, nunca
compartilhou da histeria penal. Portugal tomou a decisão de
descriminalizar a possessão de pequenas quantidades de drogas em 2001, o que
não expressou apenas uma mudança legal, mas uma mudança de paradigma para um
acesso muito maior ao tratamento, para políticas efetivamente comprometidas com
a prevenção, com a redução de danos e com serviços de reintegração social
(HUGUES and STEVENS, 2010). O objetivo definido pelas autoridades portuguesas
nesta “virada” foi, explicitamente, o de inaugurar abordagem baseada não no
moralismo ou no preconceito, mas em evidências científicas. Afinal, a
experiência anterior havia deixado muito claro que a criminalização do uso de
drogas era um obstáculo imenso para que o Poder Público pudesse oferecer uma
resposta efetiva de atenção na área da saúde e para que todos percebessem que
pessoas que usam drogas merecem ser tratadas com dignidade e respeito (HUGUES,
2006). O mesmo movimento tem sido observado em vários países latino-americanos.
Além do Uruguai onde o consumo de maconha está sendo regulado, outros países
como México e Argentina debatem francamente a necessidade de mudanças legais de
sentido descriminalizante. Estas novas tendências estão em sintonia com o que
tem sustentado a Comissão Latino Americana sobre Drogas e Democracia, fundada
pelos ex- presidentes Fernando Henrique Cardoso do Brasil, César Gaviria da
Colômbia e Ernesto Zedillo do México e integrada por 17 personalidades
independentes.[27]
IV.
Sobre as Internações involuntárias e compulsórias
Em diferentes
momentos, matérias publicadas na imprensa a respeito do PL nº 7663/2010 destacaram como aspecto central da iniciativa a previsão de
internação involuntária e compulsória de usuários de drogas[28]. Com efeito, o PL nº 7663/2010
estabelece que:
Art. 11.
Inclua-se o seguinte art. 23-A à Lei nº 11.343,de 23 de agosto de 2006:
“Art. 23-A
A internação de usuário ou dependente de drogas obedecerá ao seguinte:
I – será
realizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina
(CRM) do Estado onde se localize o estabelecimento no qual se dará a internação
e com base na avaliação da equipe técnica;
II –
ocorrerá em uma das seguintes situações:
a)
internação voluntária: aquela que é consentida pela pessoa a ser internada;
b) internação
involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de
terceiro; e
c)
internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
A proposta
apresentada pelo PL nº 7663/2010, como se percebe, é
tão-somente uma cópia do disposto sobre as internações pela Lei da Reforma
Psiquiátrica de 2001[29]. Esta lei regrou as internações em seu art. 6º, estabelecendo que:
Art. 6o A internação psiquiátrica somente será
realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São
considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I - internação voluntária:
aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação
involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de
terceiro; e
III - internação
compulsória: aquela determinada pela Justiça.
Sendo assim, deve-se perguntar: por que
o PL nº 7663/2010 preferiu repetir o mesmo comando da Lei 10.216? Sabe-se que a opinião largamente hegemônica
entre os psicólogas/os, psiquiatras, assistentes brasileiros é a de que a
drogadição é, efetivamente, um problema de saúde mental.[30] Mais uma razão, então, para que
as internações de dependentes químicos se dessem a partir da Lei 10.216. Ocorre que a Lei da Reforma Psiquiátrica não
é uma “lei de emergência”. Ela surgiu de
um movimento social de luta contra o modelo tradicional e hospitalocêntrico de
atenção na área da saúde mental. Seu processo de tramitação no Congresso
Nacional implicou em negociações que se estenderam por mais de uma década[31]. Por conta da luta
antimanicomial, toda a estrutura da lei da reforma psiquiátrica está marcada
pelo garantismo[32], onde os direitos dos pacientes e os mecanismos de controle sobre
eventuais abusos são bastante explícitos. Assim, por exemplo, o art 4º da Lei
da reforma psiquiátrica estabelece que:
Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será
indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
§ 1o O
tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente
em seu meio.
§ 2o O tratamento em regime de internação
será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de
transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social,
psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
§ 3o É vedada a internação de pacientes
portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares,
ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os
direitos enumerados no parágrafo único do art. 2o.
Ora, o PL nº 7663/2010 pretende internar inclusive os usuários
que não são dependentes. Uma pretensão que consagra o que Pavarini (1995)
chamou de “sequestro institucional”. Não seria possível internar os usuários e
dependentes nos marcos da Lei da Reforma Psiquiátrica, em síntese, porque ela
não permite o sequestro.
Por esta razão, o PL nº 7663/2010 repete os tipos de internação
para que, em outro contexto legal, não se aplique às internações por uso de
drogas as garantias inscritas na Lei da Reforma Psiquiátrica. Não por acaso, o PL nº 7663/2010 não copia
quaisquer daquelas garantias, sequer a obrigatoriedade de comunicação das
internações voluntárias e involuntárias em até 72 horas ao Ministério Público
Estadual[33] (disposição prevista no §
1º do art. 8º da Lei da Reforma Psiquiátrica), porque o objetivo é o de violar
direitos, consagrando como “política pública” a perspectiva do higienismo
social[34] de “limpar” as ruas dos
usuários do crack, de preferência com o auxílio das polícias e guardas
municipais, como já se observa em algumas capitais.
Esta preocupação, assinale-se é a
mesma constante da Nota Técnica da nº 0023/2012/GLMP/AL/DAI/SE/SG/PR da Secretaria-Geral
da Presidência da República que assinala:
É necessário destacar
que, embora o art. 23-A reforce a observância aos procedimentos da Lei nº
10.216/2009 (Lei da Reforma Psiquiátrica), há no dispositivo abertura para o
uso ampliado da internação involuntária, o que deveria ocorrer excepcionalmente.
Tal proposta vai de encontro às diretrizes da política nacional de saúde,
consoante a Resolução nº 448 do Conselho Nacional de Saúde, e da Lei da Reforma
Psiquiátrica.[35]
Observe-se, por outro lado, que as exigências do art. 4º da Lei da
Reforma Psiquiátrica – necessidade de serviços médicos, de assistência social,
psicológicos, ocupacionais, de lazer etc -
inviabilizariam qualquer internação em comunidades terapêuticas que,
como regra, não possuem profissionais qualificados e que se aproximam, em
muitos casos, do perfil de “instituições asilares” mencionadas no § 3º do art.
4º da Lei da Reforma Psiquiátrica[36].
O PL nº 7663/2010 pretende assegurar o financiamento do Governo
Federal às comunidades terapêuticas, instituições que, no Brasil, costumam
estar muito vinculadas a determinados grupos religiosos e que, com muita
frequência, violam os direitos dos internos, como o constatou a 4ª Inspeção
Nacional de Direitos Humanos realizada pelo Conselho Federal de Psicologia em
24 estados mais o Distrito Federal, em um total de 68 instituições. As
Comunidades Terapêuticas são instituições não monitoradas ou fiscalizadas que,
como regra, não dispõem de qualquer recurso terapêutico. Nelas, é comum a interceptação
e violação de correspondências, a violência física, os castigos, as torturas, a
humilhação, a imposição de credo, a exigência ilegal de exames clínicos, como o
teste de HIV, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória
de familiares, violação de privacidade etc (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2011). Esta realidade deplorável, aliás, só surgiu por conta da negligência do
Estado brasileiro que, até hoje, não foi capaz de montar serviços públicos de
qualidade e na extensão necessária para atender os dependentes químicos.
Como já vimos, o PL nº
7663/2010 quer que usuários de drogas possam ser internados contra sua vontade,
mesmo quando não são dependentes. O PL afirma isto, em seu art. 11, de forma
clara na redação proposta para caput
do art. 23-A da Lei nº 11.343: “A
internação de usuário ou dependente
de drogas obedecerá ao seguinte [...]”.
Trata-se de disposição que repete a experiência
norte-americana das Cortes de Drogas (Drug
Courts). Took (1995) chama a atenção
para o fato de que as Cortes de Drogas, que passaram a existir nos EUA e em
outras nações a partir dos anos 90[37],
surgem em um mesmo cenário histórico marcado pelo aumento da demanda punitiva.
Aparentemente, o fenômeno seria contraditório, pois “punição” e “terapia” dão
conta de dinâmicas muito distintas. Mas quando se estabelece que o próprio tratamento
é uma pena - vez que imposto contra a vontade do sujeito e como forma de
controle social – então se percebe a coerência possível entre as duas
abordagens.
Estudo da Drug
Policy Alliance (2011) encontrou que a experiência com as Cortes de Drogas
nos Estados Unidos – que determinam tratamentos obrigatórios para usuários -
não demonstrou economia, nem redução nas taxas de encarceramento, nem melhorias
na segurança pública:
Repetidas afirmações em contrário tem se revelado
inconfiáveis ou mesmo anedóticas. As avaliações são comumente realizadas pelos
criadores dos programas que estão sendo avaliados. Como resultado, as pesquisas
não possuem estatuto de cientificidade e os resultados não podem ser descritos
como ‘evidências’. As Cortes de Drogas muitas vezes selecionam pessoas que se
espera agirão bem. Muitas pessoas vão parar numa Corte dessas por infrações
menores, inclusive pelo uso de maconha. Como resultado, as Cortes de Drogas não
costumam desviar as pessoas de longas penas de prisão (...) e considerando que as Cortes de
Drogas tem seu foco em delitos de menor gravidade mesmo eventuais resultados
positivos para os participantes têm baixo impacto na segurança das comunidades.
[38]
Por conta desta avaliação, a recomendação da
entidade às autoridades americanas é a de:
Reservar as Cortes de Drogas para casos que
envolvem crimes contra a pessoa ou contra a propriedade que estejam vinculados
ao uso de drogas, enquanto se melhora as práticas das Cortes de Drogas e se
oferece outras opções para as pessoas condenadas por violação da lei de drogas.
[39]
A experiência americana deve ser tomada com
reservas, porque os EUA ainda possuem a previsão legal de prisão para usuários
de drogas. Isto faz com que muitos daqueles que são encaminhados pelas Cortes
de Drogas para tratamentos obrigatórios terminem, mais adiante, sendo mandados
para a cadeia quando descumprem uma norma, se ausentam em um compromisso ou são
flagrados em testes como reincidentes no uso de drogas; o que, por certo, afeta
o desempenho das Cortes. Mas em um aspecto, pelo menos, é fundamental estar
atento para a experiência das ordens judiciais de tratamento para usuários:
quando os profissionais de saúde recebem uma ordem judicial para tratamento
obrigatório ou para assegurar vaga em programa educativo eles cumprem esta
determinação. Mas se os serviços
existentes não forem significativamente ampliados, a dinâmica que se desdobra,
naturalmente, é a de que as vagas serão ocupadas progressivamente pelos que
receberam as ordens judiciais (que não desejam o tratamento ou a atividade
educativa), o que significa receber cada vez menos usuários que procuram
voluntariamente o tratamento ou as atividades educativas. Nos EUA foi exatamente o que ocorreu. Em 2007, os sentenciados ao tratamento na
Califórnia já eram 38% do total de participantes dos programas, incluindo 162
mil pessoas que eram usuárias de maconha (HSER, 2007:104-109). Como resultado, a proporção de pessoas
inscritas voluntariamente caiu bastante[40].
O mesmo problema ocorreu no Reino Unido (FINCH et al, 2003) e no Canadá (RUSH and WILD, 2003). Se aprovado o PL nº 7663/2010, a dinâmica tende a se repetir no Brasil, mas em
um quadro muito mais grave vez que os serviços de tratamento à drogadição
seguem sendo rarefeitos.
O PL nº 7663/2010,
entretanto, encontrou uma maneira de superar problemas do tipo – e, ao mesmo
tempo, de auxiliar os donos das clínicas privadas de psiquiatria. No § 2º do
art. 10º do PL, há a seguinte regra:
Na hipótese da
inexistência de programa público de atendimento adequado (...), o Poder
Judiciário poderá determinar que o tratamento seja realizado na rede privada,
incluindo internação, às expensas do poder público.
Neste parágrafo, se vislumbra claramente quem serão os verdadeiros
beneficiários do PL nº 7663/2010. O
Estado brasileiro não possui “programa público de atendimento adequado”.
Trata-se de informação compartilhada pelo reino mineral. Logo, será preciso -
não excepcionalmente, mas sempre- que os
recursos públicos sejam encaminhados para a rede privada que, assinale-se, tem
andado um tanto deprimida desde a Reforma Psiquiátrica e o surgimento da rede
de Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
V.
Sobre a flagrante inconstitucionalidade do PL nº 7663/2010
O PL 7663/2010 estabelece, entre outros absurdos jurídicos, a estrutura
e composição do Sistema Nacional
de Políticas sobre Drogas (SISNAD), definindo, ainda, as competências para
Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme se pode observar abaixo:
Art. 8º-B Compete aos Estados:
I – formular, instituir, coordenar e manter Sistema
Estadual de Políticas sobre Drogas, respeitadas as diretrizes fixadas pela União;
II – elaborar o Plano Estadual de Políticas sobre
Drogas em conformidade com o Plano Nacional, e em colaboração com a sociedade;
III – criar, desenvolver e manter programas, ações
e projetos para a execução das políticas sobre drogas;
IV – editar normas complementares para a
organização e funcionamento do seu sistema de políticas sobre drogas e dos
sistemas
municipais;
V – estabelecer, com a União e os Municípios,
formas de colaboração para a execução das políticas sobre drogas;
VI – prestar assessoria técnica e suplementação financeira
aos Municípios;
VII – operar o Sistema Nacional de Informações
sobre drogas e fornecer regularmente os dados necessários ao povoamento e à atualização
do sistema; e
VIII – co-financiar a execução de programas, ações
e projetos das políticas sobre Drogas nas parcerias federativas.
§ 1º As funções consultivas, de avaliação e
fiscalização do Sistema Estadual de Políticas sobre Drogas competem ao Conselho
Estadual de Políticas sobre Drogas, nos termos previstos nesta Lei, bem como outras
definidas na legislação estadual ou distrital.
§ 2º As funções normativa, executiva e de gestão do
Sistema Estadual de Políticas sobre Drogas competem ao órgão a ser designado no
Plano de que trata o inciso II do caput deste artigo.
Art. 8º-C Compete aos Municípios:
I – formular, instituir, coordenar e manter o
Sistema Municipal de Políticas sobre Drogas, respeitadas as diretrizes fixadas
pela União e pelo respectivo Estado;
II – elaborar o Plano Municipal de Políticas sobre
Drogas, em conformidade com o Plano Nacional, o respectivo Plano Estadual, e em
colaboração com a sociedade;
III – criar, desenvolver e manter programas, ações
e projetos para a execução das políticas sobre drogas;
IV – editar normas complementares para a
organização e funcionamento do seu sistema de políticas sobre drogas;
V – operar o Sistema Nacional de Informação sobre Drogas
e fornecer regularmente os dados necessários ao povoamento e à atualização do
sistema;
VI – co-financiar a execução de programas, ações e projetos
das políticas sobre drogas nas parcerias federativas; e
VII – estabelecer mecanismos de cooperação com os Estados
e a União para a execução das políticas sobre drogas.
§ 1º Para garantir a articulação federativa com
vistas ao efetivo cumprimento das políticas sobre drogas, os Municípios podem
instituir os consórcios dos quais trata a Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005,
que dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá
outras providências, ou qualquer outro instrumento jurídico adequado, como
forma de compartilhar responsabilidades.
§ 2º As funções consultivas, de avaliação e
fiscalização do Sistema Municipal de Políticas sobre Drogas competem ao
Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas, nos termos previstos nesta Lei,
bem como outras definidas na legislação municipal.
§ 3º As funções normativa, executiva e de gestão do
Sistema Municipal de Políticas sobre Drogas competem ao órgão a ser designado
no Plano de que trata o inciso II do caput deste artigo.
Art. 8º-D As competências dos Estados e Municípios cabem,
cumulativamente, ao Distrito Federal
Por muito menos, em 2006, quando da sanção do texto original da
Lei nº 11.343, o
Presidente Lula vetou por inconstitucionalidade e por contrariar o interesse
público a pretensão de determinar, por meio de norma
jurídica imperativa, a presença de órgãos e entidades do Distrito Federal, dos
Estados Federados e dos Municípios na composição do Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas.
O argumento do veto presidencial, constante da Mensagem nº 724 de
23 de agosto de 2006, é atualíssimo e se presta, ainda com muitos novos
motivos, ao delírio burocrático proposto pelo PL 7663/2010.
Senhor Presidente do Senado Federal,
Comunico a Vossa Excelência que, nos
termos do § 1o do art. 66 da Constituição, decidi vetar
parcialmente, por inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, o
Projeto de Lei no 115, de 2002 (no 7.134/02
na Câmara dos Deputados), que “Institui o Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso
indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas;
estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito
de drogas; define crimes e dá outras providências”.
“Cumpre, inicialmente,
assinalar que o art. 6o do
presente projeto de lei, ao pretender criar obrigações aos entes federados
viola, frontalmente, o princípio federativo inserto no art. 1o,
caput, da Constituição da República, restringindo, assim, a consagrada
autonomia dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, assegurada, por
sua vez, no art. 18, caput, da Carta Magna.
Não se
pode admitir que o projeto de lei determine, por meio de norma jurídica
imperativa, a presença de órgãos e entidades do Distrito Federal, dos Estados
Federados e dos Municípios na composição do Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas, sob pena de violação à autonomia constitucional dos
entes federativos (art. 18 da Constituição da República).
Outrossim,
a proposta legislativa, ao dispor sobre a organização e funcionamento da
Administração Pública federal, viola, de forma cristalina, o disposto no art.
84, VI, a, da Constituição da República, bem como o princípio da separação
entre os Poderes (art. 2o da
Constituição), já que compete, privativamente, ao Chefe do Poder Executivo
dispor, mediante decreto, sobre a matéria.
Ademais,
mesmo que assim não fosse, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, juntamente com a
mais qualificada doutrina constitucionalista, assevera não ser possível suprir
o vício de iniciativa em projeto de lei com a sanção presidencial, desde o
julgamento da Representação no 890-GB (Rp no 890/GB, rel. Min. Oswaldo Trigueiro,
Órgão Julgador: Tribunal Pleno, julgamento em 27/03/1974, RTJ 69/629), em 1974,
pois, como adverte o professor Marcelo Caetano, ‘um projeto resultante de
iniciativa inconstitucional sofre de um pecado original, que a sanção não tem a
virtude de apagar, até porque, a par das razões jurídicas, militam os fortes
motivos políticos que determinassem a exclusividade da iniciativa presidencial,
cujo afastamento poderia conduzir a situações de intolerável pressão sobre o
Executivo.’ (CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional – volume 2. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 1987, página 34).
Nada
obstante, a previsão no projeto legislativo da criação de órgãos públicos,
arts. 8o e 15,
que determina ser da iniciativa privativa do Presidente da República as leis
que disponham sobre criação de órgãos da administração pública.
Segundo
o Egrégio Supremo Tribunal Federal, ‘O desrespeito à cláusula de iniciativa
reservada das leis, em qualquer das hipóteses taxativamente previstas no texto
da Carta Política, traduz situação configuradora de inconstitucionalidade
formal, insuscetível de produzir qualquer conseqüência válida de ordem
jurídica. A usurpação da prerrogativa de iniciar o processo legislativo
qualifica-se como ato destituído de qualquer eficácia jurídica, contaminando,
por efeito de repercussão causal prospectiva, a própria validade constitucional
da lei que dele resulte’. (Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar em Ação
Direta de Inconstitucionalidade no 2.364-1/AL, rel. Min. Celso de Mello,
Órgão Julgador: Tribunal Pleno, DJ de 14/12/2001).
Colhe-se
do mesmo julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal:
‘O
princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência
normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência
administrativa do Poder Executivo. Essa prática legislativa, quando efetivada,
subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional
do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e
importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua
atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de
suas prerrogativas institucionais.’ (Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar
em Ação Direta de Inconstitucionalidade no2.364-1/AL, rel.
Min. Celso de Mello, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, DJ de 14/12/2001).
Em decisões recentes, observa-se a
mesma conclusão:
‘É
indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei
ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de
alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura
administrativa de determinada unidade da Federação.’ (Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.254/ES, rel. Min. Ellen Gracie,
Órgão Julgador: Tribunal Pleno, DJ de 02/12/2005).”
Poucos parlamentares leram o PL nº 7663/2010. É a única conclusão
possível capaz de explicar o fato dele seguir sendo apreciado pela Câmara dos
Deputados e já com urgência aprovada para votação. Mesmo fora do Parlamento, o mais provável é
que os jornalistas não tenham lido o PL de autoria do deputado Osmar Terra.
Apenas isto explica o fato do projeto não ter, até hoje, merecido sequer as
perguntas procedentes.
Uma destas
perguntas poderia ser: pode o parlamento brasileiro aprovar, sem um efetivo
debate com a sociedade, Projeto de Lei de 25 páginas (sem contar a
justificativa), que trata de 1) farmacodinâmica, 2) dependência química; 3)
diretrizes para política nacional de drogas; 4) diretrizes para
profissionalização, trabalho e renda; 5) diretrizes de saúde integral; 6) da
rede e do sistema nacional de política sobre drogas; 7) da composição do
sistema nacional; 8) das atribuições dos entes federados; 9) dos conselhos de
políticas sobre droga; 10) da eleição dos conselhos; 11) do sistema nacional de
informações sobre drogas; 12) da avaliação da política sobre drogas; 13) das
responsabilidades dos gestores em todos os níveis; 14) das internações
voluntárias, involuntárias e compulsórias; 15) das penas para usuários e
traficantes; 16) do fundo de prevenção, recuperação e de combate às drogas de abuso;
17) dos requisitos obrigatórios para a inscrição de projetos, entre outros
temas?
Outra pergunta
poderia ser: qual o sentido das disposições constantes no art. 8-E, § 1º e seus incisos e § 2º, II ? Nelas, o PL nº 7663/2010 trata dos
“Conselhos de Políticas sobre Drogas” estabelecendo:
§ 1º Em cada
ente federado haverá um Conselho de Políticas sobre Drogas composto pela
seguinte quantidade de membros efetivos:
I - vinte,
para a União;
II - quinze para
os Estados e o Distrito Federal;
III - dez,
para os Municípios.
§ 2º Lei
federal, estadual, distrital ou municipal disporá sobre:
I – o local,
dia e horário de funcionamento do Conselho de Políticas sobre Drogas;
II – a
remuneração de seus membros;
III – a
composição;
IV – a
sistemática de suplência das vagas.
§ 3º
Constará da lei orçamentária federal, estadual, distrital ou municipal previsão
dos recursos necessários ao funcionamento do Conselho de Políticas sobre Drogas
do respectivo ente federado.
Esta passagem do PL nº
7663/2010 está, então, a) impondo que Estados e Municípios, além do DF,
organizem “Conselhos de Políticas sobre Drogas”; b) determinando qual o número
de integrantes dos Conselhos nos Estados, Municípios e DF; c) obrigando a
elaboração de leis estaduais,
distrital e municipais; d) determinando sobre o que deverão dispor as referidas
legislações; e) decidindo que os cargos de conselheiros serão remunerados e,
finalmente, f) obrigando a inclusão nas respectivas leis orçamentárias dos recursos
necessários ao funcionamento dos Conselhos.
Se isto não
fosse manifestação cabal de total desrespeito à Federação, se a proposta fosse
efetivamente implementada, o PL nº 7663/2010
estaria criando, de uma só vez, mais de 56 mil funções públicas remuneradas, do
Oiapoque ao Chuí. Em centenas de
municípios brasileiros teríamos mais “conselheiros para políticas de drogas” do
que médicos, assistentes sociais ou psicólogos.
O PL cria, ainda, sistema de
financiamento em ações de saúde paralelo ao SUS e ao SUAS, o que, mais uma vez,
viola a Constituição Federal, tal como o observou a Nota Técnica do Ministério
da Saúde:
Pela proposta do
anteprojeto de Lei, há a previsão de que o SISNAD, atualmente órgão coordenador
intersetorial das políticas sobre drogas conforme a lei 121.343/2006, passe a
contar com unidades de atendimento, conforme o art.3º, § 2, III do anteprojeto.
Ainda no art.3 § 8, há a explícita instituição pessoas jurídicas de direito
privado entre as unidades de atendimento do SISNAD. Extrai-se, neste ponto,
referência às comunidades terapêuticas, conforme apontado no relatório de
justificação da proposta apresentada.
6. A proposta
cria, portanto, um terceiro sistema de atenção, paralelo ao SUS e ao SUAS. No
que diz respeito à atenção à Saúde, há nítida inconstitucionalidade. O Sistema
Único de Saúde - SUS - foi criado pela Constituição Federal de 1988 e
regulamentado pelas Leis n.º 8080/90 e nº 8.142/90, Leis Orgânicas da Saúde,
tendo o sistema mandatos e competências específicos para regular, fomentar e
promover a atenção à saúde.
7. Entendemos que
o SISNAD não poderia, portanto, constituir unidades de atenção em funcionamento
paralelo ao SUS e SUAS, tampouco legislar sobre estes dois sistemas, conforme
previsto no art 3º § 4 da proposta. O SUS e o SUAS, tem nas suas estruturas de
prestação de serviços entidades públicas e privadas, para as quais estabelece
regras e normativas, podendo contratar e conveniar nos termos das leis que
regem os sistemas.
8. Mais uma vez, é
importante ressaltar a resolução 448 do Conselho Nacional de Saúde, que, com
vistas à garantia de não-isolamento dos indivíduos, determina que o atendimento
deve estar atrelado ao SUS. Mesmo as entidades privadas de atenção à saúde
fazem parte do SUS, estando designadas como partes da rede complementar do
sistema, pelo SUS reguladas[41].
VI.
Sobre o Substitutivo ao PL nº 7663
O que foi observado criticamente neste parecer sobre
o texto original do PL nº 7663 se mantém para o Substitutivo aprovado pela Comissão
Especial do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, com a única diferença a
ressaltar que o Substitutivo consegue a façanha de tornar o texto original
muito pior. Este resultado perverso é fruto da incorporação de barbaridades
constantes em outros PLs e que redundaram em modificações e acréscimos que não
podem ser aceitos pelo Congresso Nacional, nem pelo Governo Federal, nem pelo
bom senso. Os temas mais importantes a
comentar sobre o Substitutivo são os seguintes:
a) Sobre
a sanha punitiva - O
Substitutivo está propondo que a pena mínima para tráfico de drogas seja
aumentada de 5 (cinco) anos para 8 (oito) anos. Já o crime do art. 37 da Lei
11.343 (colaborar como informante do tráfico) tem suas penas majoradas de 2
(dois) a 6 (seis) anos de reclusão para 6 (seis) a 10 (dez) anos de
reclusão. Além disso, o Substitutivo
agrava a proposta do PL de Terra de introduzir duas novas causas de aumento de
pena, agora fixadas de 2/3 (dois terços) a 4/5 (quatro quintos) , como se pode
ver abaixo:
“Art.
33.................................................................................
Pena - reclusão de 8 (oito) a
15 (quinze) anos e pagamento de 1000 (mil) a 2.500 (dois mil e quinhentos)
dias-multa.
.....................................................................................
§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste
artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto, desde que o agente seja
primário. (NR)
Art.
34.................................................................................:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e pagamento
de 2.200 (dois mil e duzentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa. (NR)
Art.
35..................................................................................
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e pagamento
de 1700 (mil e setecentos) a 2.200 (dois mil e duzentos) dias-multa.
Art.
36..................................................................................
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento
de 2.500 (dois mil e quinhentos) a 8.000 (oito mil) dias-multa. (NR)
Art.
37..................................................................................
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos, e pagamento
de 1300 (mil e trezentos) a 1700 (mil e setecentos) dias-multa. (NR)
Art. 39-A. Revelar ou permitir
o acesso à informação sobre usuário ou dependente de drogas a pessoa não autorizada
ou quebrar o dever de sigilo.
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e
multa.
Art. 40. As penas previstas
nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de dois terços a quatro quintos, se:
..........................................................................................
VIII – há concurso de duas ou
mais pessoas;
IX – o crime envolve a mistura
de drogas.
Os defensores desta proposição
sustentam, então, que vender substância considerada ilícita – como maconha, por
exemplo – é algo que merece maior reprovação social do que matar alguém. A pena
mínima para homicídio simples no Brasil, como se sabe, é de 6 (seis) anos (art.
121, CPB). No caso do homicídio
simples, aliás, o Código Penal Brasileiro estabelece condição de diminuição de
pena ao assinalar:
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante
valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a
injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um
terço.
No caso do tráfico de
drogas, o Substitutivo não cogita de causas de diminuição de pena, claro. Se o
vendedor de drogas tem 18 anos, se é analfabeto, se vive na rua desde os sete
anos de idade, se é um dependente químico que se associa ao tráfico para poder
consumir drogas, se não consegue se afastar do tráfico por receio de ser morto,
nada disso poderá ser sequer considerado quando da fixação das penas. O importante
é vender para a opinião pública que o PL está “jogando duro com os bandidos” e
que, agora, eles ficarão muito mais tempo na prisão. Sim, de fato, se aprovado
este conjunto de proposições, teremos a mais ampla onde de encarcerização já
produzida no Brasil desde a Lei dos Crimes Hediondos. A crise do sistema
penitenciário brasileiro que se prolonga por décadas será, então, ampliada a
uma escala jamais experimentada.
O causa de aumento pelo
concurso de pessoas proposta pelo Substitutivo fará com que as penas para
tráfico de drogas no Brasil possam alcançar 27 (vinte e sete) anos de reclusão.
b)
Sobre a montagem de uma rede de delação desde as
escolas - O Substitutivo quer montar
um sistema de atendimento telefônico (sic) para receber denúncias de uso e
dependência de drogas. Pretende, também, de maneira claramente inconstitucional
– por violar o princípio da autonomia federativa - estabelecer obrigações aos
agentes públicos e privados quanto à educação com atribuições às escolas, como
se observa abaixo:
Seção II
Das
Diretrizes Gerais para Elaboração das
Políticas sobre Drogas
Art. 8º-H É obrigatório que os agentes públicos
ou privados observem as seguintes diretrizes na elaboração e na execução dos
planos de políticas sobre drogas:
............................................................................................
XIV – fomentar a criação de serviço de
atendimento telefônico para
receber denúncias de uso e dependência de
drogas e substâncias
psicoativas ilegais.
Seção V
Das Diretrizes
quanto à Educação
Art 8-K É obrigatório que os agentes públicos ou
privados observem as seguintes diretrizes na elaboração e na execução dos
planos de políticas sobre drogas na educação:
I – promover que os regimentos
escolares e os regimentos internos das entidades de atendimento definam as
ações preventivas, as medidas disciplinares e as responsabilidades dos que
atuarem de forma direta ou indireta, por ação ou omissão na ocorrência de uso e
dependência de drogas;
II – habilitar os professores
a identificarem os indicadores relativos à ingestão abusiva de álcool e à
dependência de drogas e dar o devido encaminhamento nos casos previstos;
CAPÍTULO IV
DO SISTEMA
NACIONAL DE INFORMAÇÃO SOBRE
DROGAS
Art 16.
.............................................................................
Parágrafo
único. As instituições de ensino deverão fazer o preenchimento da ficha de
notificação, suspeita ou confirmação de uso e dependência de drogas e
substâncias psicoativas ilegais para fins de registro, estudo de caso e adoção
de medidas legais. (NR)
Com isto, fica clara a intenção de
envolver a rede de ensino público e privado no Brasil na relevante tarefa de
promover as “medidas disciplinares” necessárias a serem aplicadas àqueles que
“atuarem de forma direta ou indireta, por ação ou omissão na ocorrência de uso
e dependência de drogas”. O Substitutivo está determinando a perseguição aos
professores que, por exemplo, entendam que a política de drogas no Brasil
deveria ser desenvolvida por legisladores com maior capacidade de raciocínio. A
proposição é ultrajante e deve merecer o repúdio de todos os democratas. Um
professor não deve ser visto como um agente policial, nem se pode exigir dele
medidas que impliquem na responsabilização legal de usuários de drogas como,
por exemplo, a notificação de suspeição.
Uma obrigação do tipo – ainda que ela não fosse algo mais que um delírio
totalitário - só tornaria impossível a formação de vínculos entre docentes e
usuários de drogas; vínculos firmados na
confiança, na interlocução, no aconselhamento e na disposição de compreender e
ajudar. Este aspecto foi, aliás, bem percebido pela já mencionada Nota Técnica
do Ministério da Saúde que assinala:
Entendemos que a
escola, além de ser um espaço que visa proporcionar educação de qualidade,
prepara para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, cumpre a
função de construir vínculos, confiança e acolhimento. A instituição escola, na
previsão do projeto de lei, se fragiliza na medida em que se torna um “espaço inquisidor”,
podendo inclusive adotar posições criminalizadoras, o que fere integralmente o
item II do art. 53 do ECA que diz: “direito de ser respeitado por seus
educadores”. Isto distorce a relação educador-aluno construída no processo
educacional. Entendemos que, pela proposta, tem-se mais chance de promover o
afastamento e evasão do sistema escolar, não raro um dos únicos pontos
restantes de contato do Estado e da coletividade com aquele cidadão,
desperdiçando possíveis vínculos a serem estabelecidos para atenção e de
acolhimento devido ao uso de drogas[42].
Já a disposição
que pretende obrigar as escolas a “preencher ficha de notificação suspeita ou
confirmação de uso e dependência de drogas e substâncias psicoativas ilegais
para fins de registro, estudo de caso e adoção de medidas legais” eleva o
Substitutivo, para além do farto folclore político brasileiro, à condição sem
precedentes de agenciador de uma rede de delação que nem a ditadura militar
teve o desplante de conceber.
VII.
Conclusão
Por todos os motivos
expostos, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) manifesta sua opinião
contrária à aprovação do PL nº 7663/2010, e ao seu Substitutivo,
considerando-os como graves ameaças aos direitos civis e caminhos totalmente
equivocados para uma resposta pública eficiente diante dos problemas de saúde
pública que envolvem o abuso de drogas no Brasil.
Solicita, ainda, que o PL nº
7663/2010, de autoria do deputado Osmar Terra, bem como o Substitutivo aprovado
Comissão
Especial do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas
não sejam submetido à votação, por flagrantemente inconstitucionais e
contrários ao interesse público.
Alerta, por fim, a opinião
pública, os jornalistas, os pesquisadores, os profissionais de saúde e,
destacadamente os psicólogos brasileiros, para a necessidade de se ampliar o
debate sobre os temas expostos neste parecer, para que seja possível construir
políticas públicas com base em evidências. Trata-se, em síntese, do desafio de
colocar o Brasil em sintonia com aquilo que de mais avançado se tem produzido
em todo o mundo, superando a tradição de demagogia política, alarma social e
intolerância e as perplexidades e fracassos dela resultantes.
Conselho Federal
de Psicologia
Brasília, 13 de março de 2013
[1] Projeto de lei de autoria do Deputado
Osmar Terra (PMDB/RS) que “acrescenta e altera
dispositivos à Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, para tratar do Sistema
Nacional de Políticas sobre Drogas, dispor sobre a obrigatoriedade da
classificação das drogas, introduzir circunstâncias qualificadoras dos crimes
previstos nos arts. 33 a 37, definir as condições de atenção aos usuários ou
dependentes de drogas e dá outras providências.
[2] No
original: The reign
of tears is over. The slums will soon be a memory. We will turn our prisons
into factories and our jails into storehouses and corncribs. Men will walk
upright now, women will smile and children will laugh. Apud: Woodiwiss
(1988:6).
[3] Bad Features of the Present Situation and
Difficulties in the Way of Enforcement. In:
Report on the Enforcement of the Prohibition Laws of the United States,
By National Commission on Law Observance and Enforcement, 1931 – Disponível em: http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/wick/wick3.html
[4] Um exame criterioso a respeito da
redução do crime e da violência em Nova Iorque nos anos 90 pode ser encontrado
na obra de Zimring (2011).
[5] “What Really Cleaned Up New York” - The city's extraordinary, continuing decrease in crime had little to do with Giuliani. An expert explains why - By Thomas Rogers. Disponível em: http://www.salon.com/2011/11/19/what_really_cleaned_up_new_york/
[5] “What Really Cleaned Up New York” - The city's extraordinary, continuing decrease in crime had little to do with Giuliani. An expert explains why - By Thomas Rogers. Disponível em: http://www.salon.com/2011/11/19/what_really_cleaned_up_new_york/
[6] Este comando,
claramente inconstitucional, terminou sendo revogado pela Lei 11.464/2007 que
modificou o inciso II do artigo 2º da Lei 8.072/90, suprimindo a determinação
do artigo 44 da Lei 11.343/2006.
[7] A chamada “dark rate” (cifra obscura) que mede a quantidade de crimes não
relatados ao Estado só pode ser estimada a partir de pesquisas de vitimização.
Este tipo de pesquisa, entretanto, é muito raro no Brasil onde – ao contrário
dos países de democracia avançada - as
autoridades e gestores na área da segurança seguem produzindo diagnósticos com
base em estatísticas policiais.
[8] Em
1994, dados do Bureau of Justice Statistics, do Uniform Crime Reports
e das pesquisas de vitimização, permitiram a projeção de um total de 3,9
milhões de crimes violentos no país. Nesse mesmo ano, 117 mil penas de prisão
para este tipo de crime foram prolatadas pelos tribunais americanos, o que
perfaz 3% do total.
[9] Sistema Integrado de Informações Penitenciárias –
InfoPen. Disponível em:
[10] Alguns autores como Gomes (2006) têm
empregado a expressão “despenalização do consumo”, o que parece inadequado vez
que a nova lei segue prevendo penas aos usuários (advertência, prestação de
serviços à comunidade e medida educativa). A novidade da Lei 11.343 quanto ao
consumo foi a supressão da pena privativa de liberdade. Aliás, a própria Lei
situa as medidas previstas para os usuários como “penas”, estabelecendo em dois
anos a sua prescrição (art. 30). Neste sentido, conforme reconheceu o STF, ela
descarcerizou, mas não despenalizou. (RE
430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07).
[11] Rezende (2011) observa com razão que
se tornou comum, também, que os magistrados aceitem como válida a prova da
apreensão de drogas na casa do réu sem mandado judicial de busca e apreensão.
No inquérito, os policiais fazem constar que “o réu concordou com a entrada da
polícia em sua residência”. Esta estranha obsessão dos réus para a produção de
prova contra si não produz qualquer desconfiança e é o bastante, mesmo quando,
na fase judicial, os acusados desmentem a afirmação.
[12] Assinale-se que a
Espanha descriminalizou o consumo de drogas, mas segue combatendo o tráfico e
restringindo o consumo de drogas legais como o álcool. A chamada “Ley del Botellon”, por exemplo, proíbe consumo de álcool em vias
públicas bem como a venda de bebidas em postos de gasolina.
[13] Entrevista à Revista Isto É. Disponível
em:
[14] Ministério da
Justiça e PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Pesquisa de
Luciana Boiteux e Ela Wiecko Volkmer de Castilho, 2009. Disponível em: www.mj.gov.br/sal.
[15] O condenado por tráfico de drogas é
percebido pelo senso comum como alguém que fez desta atividade sua profissão e
que é, por definição, integrante do “crime organizado”. Estudo de Resende
(2011) demonstra, entretanto, que a maior parte dos condenados por tráfico são
primários (mais de 60,9%) e atuam em atividades com baixa ou nenhuma
qualificação como empregadas, diaristas, babás, jardineiros,
engraxates,flanelinhas, carroceiros, prostitutas, serralheiros, pintores de
parede, eletricistas, serventes de obras, garçons, motoboys, cozinheiros,
vendedores ambulantes, vidraceiros, catadores, cobradores, cabeleireiras,
manicures, mecânicos, chapeiros etc.
[16] Recente estudo da Anvisa encontrou
que, entre 2009 e 2011, o consumo
do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e
Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16
anos.
[17] Dados do 2º levantamento nacional de
álcool e drogas (Lenad) realizado pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas
do álcool e outras Drogas (Inpad), da Unifesp. Relatório disponível em: http://www.inpad.org.br/images/stories/LENAD/lenad_maconha-1%20copia.pdf
[18] Idem. Relatório disponível em:
[19] No discurso proibicionista as drogas
são tratadas como se fossem seres malignos dotados de volição. São elas, então,
que “causam” a dependência. O fenômeno da dependência, por óbvio, é mais
complexo e jamais será compreendido se desconsiderarmos seu verdadeiro sujeito,
aquele que busca a droga.
[20] Leon de Souza Lobo Garcia- Área Técnica de Saúde Mental, Álcool e outras drogas
DAPES/SAS/MS. Parecer contrário ao PL 7663 emitido em 17/10/2012.
[21] LARANJEIRA, Ronaldo e GIGLIOTTI,
Analice. Tratamento da dependência da nicotina. Psiquiatria na prática médica. Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM. Disponível em: http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/atu1_02.htm
[22] Center of
Disease Control Fact Book for 2000-2001, Atlanta,
GA, p.47.
[23] Kaminski (apud SEQUEIRA, 2006) afirma
que o fenômeno das drogas está largamente determinado pelo discurso que delas
se faz. A representação social da droga seria seu elemento mais tóxico.
Percebe-se isto claramente também quando se compara os níveis de preocupação na
opinião pública e nos governos com o álcool.
[24] Notícia no site da Câmara em:
[26] Crime in the
United States, FBI annual, Uniform Crime Reports, Estimated arrests for drugs
abuse violation by age group, 1970/2005.
[27] Uma apresentação dos argumentos da
Comissão pode ser acessada em: http://www.drogasedemocracia.org/Arquivos/declaracao_portugues_site.pdf
[28] Ver por exemplo notícia do site da
Câmara em:
[29] Lei 10.216 de 6 de
abril de 2001 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
[30] Independente desta discussão, não há
dúvidas de que o uso abusivo de drogas e a dependência química estão
correlacionados à presença de doenças mentais. Ver, por exemplo: Lynskey et al, 1998; Tsuang, et al,
1998; Fergusson, et al, 1996 e
Kendler et al, 1993.
[31] O Projeto original da reforma foi
apresentado pelo deputado Paulo Delgado (PT/MG) em 1989. A Lei 10.216, aprovada em 2001, foi o substitutivo resultante das
negociações parlamentares.
[32] Compreende-se por garantismo as
concepções que sustentam que toda norma jurídica deve ser interpretada em
conformidade com seus princípios garantidores, notadamente os direitos humanos.
Na área do direito penal e processual penal, esta visão foi desenvolvida pelo
filósofo italiano Luigi Ferrajoli em “Direito e Razão: teoria do garantismo
penal”.
[33] A proposta do PL nº 7663/2010, neste particular, é a de efetuar o registro
das internações e altas médicas no “sistema nacional de informações sobre
drogas” ao qual terá acesso o Ministério Público. Ou seja: a comunicação ao MP
não é tratada como uma garantia contra a internação abusiva, mas como mera
franquia a registro público, no todo desnecessária vez que a missão
constitucional da autoridade ministerial pressupõe o acesso a este tipo de
informação. O desafio, portanto, não é o do acesso à informação, mas o da
comunicação urgente que permita o controle concomitante.
[34] A propósito, vale muito conhecer os
trabalhos reunidos por Maria Lúcia Boarini em “Higiene e raça como projetos:
higienismo e eugenismo no Brasil”. Maringá: Eduem, 2003.
[35] Gustavo Leonardo Maia Pereira, Procurador
Federal – Parecer da Secretaria-Geral da Presidência da República sobre o PL nº
78663/2010, emitido em 18 de outubro de 2012.
[36] Neste ponto, o PL nº 7663/2010 faz uma referência formal à Lei 10.216 (da
Reforma Psiquiátrica) ao assinalar que: § 6º “O
planejamento e execução da terapêutica deverá (sic) observar o previsto na Lei
nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial
em saúde mental”. Uma referência, a um
só tempo, genérica e restritiva porque exclusiva ao “planejamento e à execução
terapêutica”.
[38] No original: Oft-repeated
claims to the contrary are revealed to be anecdotal or otherwise unreliable.
Evaluations are commonly conducted by the creators of the programs being
evaluated, and the result is research that is unscientific, poorly designed,
and cannot be accurately described as evidence. Drug courts often “cherry pick”
people expected to do well. Many people end up in a drug court because of a
petty drug law violation, including marijuana. As a result, drug courts do not
typically divert people from lengthy prison terms. And, given that many drug
courts focus on low-level offenses, even positive results for individual
participants translate into little public safety benefit to the community.
[39] No original: Reserving
drug courts for cases involving offenses against person or property that are
linked to a drug use disorder, while
improving drug court practices and providing other options for people
convicted of drug law violations.
[40] SAMHSA, Office of Applied Studies, Treatment Episode Data Set (TEDS).
Highlights – 2007 National Admissions to Substance Abuse Treatment Services,
DASIS Series: S-45, DHHS Publication No. (SMA) 09-4360, Rockville, MD, 2009.
[41] Leon de Souza Lobo Garcia- Área Técnica de Saúde Mental, Álcool e outras drogas
DAPES/SAS/MS. Parecer contrário ao PL 7663 emitido em 17/10/2012.
[42] Leon de Souza Lobo Garcia- Área Técnica de Saúde Mental, Álcool e outras drogas
DAPES/SAS/MS. Parecer contrário ao PL 7663 emitido em 17/10/2012.
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