“Quem
anda
no
trilho
é
trem
de
ferro,
sou
água
que
corre
entre
pedras:
liberdade
caça
jeito.”
(Manoel
de
Barros)
Escolho
iniciar
esta
conversa,
citando
o
poeta
que
ensina
sobre
um
bem
precioso
na
vida:
a
liberdade!
Vejo
nela
a
possibilidade
de
traçar
caminhos,
ser
diferente,
tropeçar,
recomeçar,
encontrar
pedras,
perdas,
alguns
ganhos
e
ser
responsável.
Condição
que
traz
a
possibilidade
do
encontro,
mesmo
que
isso
não
seja
garantia
de
felicidade,
já
que
pode
haver
no
encontro
a
marca
do
mal
estar,
e
aí
cabe
a
cada
um
escolher
o
modo
de
tratar.
O
poeta
escreve,
faz
escolha
pela
sublimação.
Alguns
com
este
esforço
de
poesia
são
capazes
de
voar
com
os
pés
no
chão
e
outros
andam
pelo
mundo...
Quero
compartilhar
algo
de
nossas
andanças,
já
que
nosso
Consultório
se
propõe
a
ser
de
Rua
e
ir
até
onde
o
povo
está,
como
faz
o
artista!
Ousadia
que
nos
faz
acompanhar
aqueles
que
tomam
o
espaço
da
rua
para
fazer
uso
de
drogas.
A
oferta
de
cuidados
e
a
articulação
de
Rede
é
o
que
marca
o
trabalho.
A
partir
do
viés
da
Redução
de
Danos
e
Reforma
Psiquiátrica,
inaugura-se
a
responsabilidade
do
poder
público
nas
chamadas
“cenas
de
uso”
de
drogas.
Atualmente,
4
equipes
atuam
em
pontos
diferentes
da
cidade
de
Belo
Horizonte,
fazendo
surgir
uma
oferta
que
vai
na
contramão
das
políticas
higienistas
que
constantemente
param
caminhões
para
recolher,
levar,
e
mesmo
limpar
a
cidade
desses
que
escapam
à
norma
social
e
apontam
para
um
gozo
excessivo.
Para
dar
conta
dessa
tarefa
de
transmitir
algo
da
peculiaridade
do
trabalho
de
cada
equipe,
vou
seguir
o
percurso
do
rio,
desde
a
nascente
até
outros
cursos
que
ele
vem
ganhando.
Este
rio
segue
o
que
está
fora
do
contorno
da
cidade,
seus
becos,
suas
bocas!
Cena
1
– Equipe
Noroeste
“Meu
caminho
é
de
pedras
como
posso
sonhar”?
Sonhar
a
brisa,
o
vento,
um
alento,
intervalos,
laços
e
quiçá
travessia.
É
assim
que
chegamos
à
chamada
Crackolândia
da
cidade.
Lugar
intoxicado
pelo
discurso
midiático
e
pelos
efeitos
dessa
embriaguez
no
imaginário
da
sociedade.
Perigosos,
noiados,
zumbis,
“pedretes”:
“Joga
pedra
na
Geni,
Joga
pedra
na
Geni!”
Das
surpresas
no
caminho,
encontramos
uma
paisagem
local
formada
por
imensas
pedreiras,
que
nomeia
a
região
Pedreira
Prado
Lopes.
Lugar
que
foi
marcado
pelo
trabalho,
quando
Belo
Horizonte
se
tornou
Capital
de
Minas
Gerais.
Hoje,
pelas
ruas
as
águas
que
correm
são
as
de
esgoto
a
céu
aberto,
levando
os
lixos
espalhados
pelas
esquinas.
Da
paisagem
local
ao
que
surge
com
a
exigência
de
consumo
do
nosso
tempo,
outras
pedras:
o
crack.
O
uso
de
crack
na
região
é
algo
que
se
faz
estrangeiro
para
os
moradores
desta
comunidade:
“esse
pessoal
não
é
daqui”!
Pela
escolha
decidida
de
se
aproximar
do
estranho,
do
estrangeiro
seguimos
a
caminhada.
Chegamos
de
mansinho,
“na
humildade”,
como
apontam
os
adolescentes
moradores
dali.
Nos
becos,
ruas,
maloquinhas,
terrenos
baldios,
fizemos
das
estratégias
de
Redução
de
Danos
um
jeito
de
dar
boas-vindas.
E
somos
retribuídos
sendo
autorizados
a
chegar.
“Normal,
a
van
que
sobe!”
anunciam
as
nossas
boas-vindas.
Chegamos
para
introduzir
algo
novo,
um
outro
olhar!
Logo
de
início
isso
nos
é
apontado:
“O
jeito
que
vocês
olham
pra
gente
é
diferente”.
A
posição
de
acolhimento
e
vínculo
propicia
o
laço
com
cada
um!
No
momento
das
abordagens
é
possível
deixar
de
lado
o
mutismo
dos
cachimbos
e
“parar
de
fumar
pra
conversar”,
regra
instituída
pelos
próprios
usuários.
Aos
poucos
a
parada
da
van
já
se
torna
um
convite
ao
pensar:
“eu
vejo
vocês
virando
a
esquina
e
me
pergunto
porque
estou
aqui
de
novo?”
Começam
aparecer
histórias
e
as
verdadeiras
pedras
do
caminho:
a
vulnerabilidade,
desigualdade
social,
exclusão,
preconceito
e
repressão.
Drogas
com
alto
poder
de
letalidade.
“Joga
pedra
na
Geni”?
Aprende-se
que
com
um
outro
olhar
é
possível
traçar
novos
caminhos
juntos
rumo
à
cidadania.
Cena
2
– Equipe
Centro-Sul/Leste
“Já
de
saída
minha
estrada
entortou.”
Inda
garotos
não
vão
pra
escola.
Nem
ladrões
ou
bons
de
bola.
Não
há
anjos
safados
ou
querubins
que
predestinem
o
futuro,
mas
há
marcas
de
violação
de
direitos
e
abandono.
Tomam
as
ruas
um
grupo
de
“meninos”,
que
rouba
a
cena
na
região
centro-sul
da
cidade.
Fazem
“corres”
e
“tem
que
estar
ligados,
pra
não
ser
vacilão
e
responder
à
correria
do
mundão”.
Circulam
entre
regiões
nobres,
pelas
traseiras
de
ônibus
ou
parados
nos
sinais.
Mangueando
algo
da
vida,
eles
pedem
sem
cessar.
Na
Savassi,
Região
Hospitalar,
Avenida
dos
Andradas,
pontos
de
conexões
da
cidade,
ali
estão,
demonstrando
de
forma
exorbitante
algo
da
desinserção.
Provocam
motins,
andam
em
bando
e
entre
umas
e
outras
fazem
uso
de
thínner
para
tratar
a
fome
e
a
falta
de
proteção.
Anestesia
para
as
dores
da
vida.
Na
onda
do
imaginário
social,
recebem
nomes
do
pior:
pivetes,
trombadinhas,
perigosos.
São
atropelados
por
intervenções
repressoras
e
pelas
armadilhas
da
vida
sem
proteção.
O
pior
é
o
que
se
faz
em
nome
da
proteção.
O
laço
com
o
Consultório
de
Rua,
propicia
momentos
de
delicadeza
e
alguma
ancoragem.
Da
“correria”
às
corridas
de
saco.
Introduz-se
algo
do
lúdico
para
chegar
mais
perto.
Assim,
se
faz
possível
deixar
de
lado
os
paninhos
e
garrafas
de
cola
e
tomar
posse
de
pincéis,
tintas
e
cores.
Vão
ao
cinemas
e
parques.
Pedem
menos
repressão
e
mais
arte.
Seguimos
na
contramão
da
estrada
torta.
E
no
movimento
segue-se
rumo
à
região
de
suas
moradias,
numa
tentativa
de
desatar
nós
e
retomar
algum
fio
que
ainda
resta
de
laço,
seja
com
as
famílias,
comunidade
ou
Estado.
Alguma
inserção
possível,
um
abrigo
ou
momento
de
descanso.
Tentativa
de
fazer
morada
no
campo
do
outro.
“Deixa
ele
viver,
é
o
que
liga!”
Cena
3
– Equipe
Oeste
“Todos
os
dias
é
um
vai-e-vem.
A
vida
se
repete
na
estação”
Dos
que
chegaram
pra
ficar
aos
que
vieram
só
olhar.
Estão
a
sorrir
e
a
chorar.
Inicia-se
a
vida
a
partir
da
linha
do
trem.
Constroem
suas
“casinhas”,
diminutivo
atribuído
pela
população
local.
Dos
encontros
às
despedidas,
tomamos
esta
cena
pelo
modo
que
percebemos
à
marginalização
neste
lugar.
Há
uma
grande
circulação
de
pessoas,
que
transitam
por
ali.
Entre
butecos
e
bocas.
De
um
lado
ao
outro,
atravessamos
a
linha
do
trem
e
a
Via
Expressa
na
região
Oeste
da
cidade.
Fazemos
a
opção
por
transitar
entre
as
pessoas
,estar
ao
lado,
acompanhar
e
nos
interessar
em
saber
sobre
elas.
“Bom
dia”.
“Como
vai
você?”
São
pausas
introduzidas
por
palavras
que
rompem
com
a
repetição
gerada
pela
exclusão
social
nesta
estação.
A
desatenção
é
anunciada
pelas
políticas
que
não
tinham
este
território
como
área
de
abrangência.
Estão
apartados,
à
margem,
fora
da
linha!
“A
plataforma
dessa
estação.
É
a
vida
desse
meu
lugar”.
A
droga
não
é
a
única
mercadoria,
há
também
a
exploração
sexual
de
mulheres
e
travestis.
Às
vezes
aparece
a
relação
de
troca
sexo
por
droga.
A
prostituição
compõe
a
cena.
O
que
pode
aumentar
a
situação
de
vulnerabilidade.
O
avanço
foi
o
acesso
aos
direitos
e
a
visibilidade
dessas
pessoas
na
cena
da
cidadania.
O
trem
que
chega
não
é
o
mesmo
trem
da
partida.
Circulando
pela
região,
encontramos
nos
dias
cinzas
embaixo
de
viadutos,
uma
proposta
de
“arrumar
a
casa”.
Pedido
vindo
de
quem
há
muito
tempo
se
encontra
por
ali.
Pintam
flores,
frases,
desabafam,
encontram
essa
possibilidade
numa
oficina
de
grafite.
A
vida
que
às
vezes
se
repete,
repete
para
que
o
novo
possa
surgir!
Cena
4
– Equipe
Norte
“Dança
na
corda
bamba
de
sombrinha”
Bêbados
ou
equilibristas
na
corda
bamba
do
que
é
viver.
Cai,
recai,
levanta!
Um
bar
chama
atenção
pela
música
alta
e
pela
ausência
de
porta,
o
funcionamento
é
24
horas.
Circulam
muitas
pessoas
e
a
tarde
vai
caindo
feito
viaduto.
Ali
ao
lado,
na
praça
que
consagra
os
Trabalhadores
e
nos
viadutos
locais
da
Região
Norte
da
cidade.
A
convivência
intoxicada
pelo
álcool
dá
um
tom
de
socialização,
e
muitas
vezes,
escancara
a
solidão
de
cada
um.
Paradoxo!
“Mas
sei,
que
uma
dor
assim
pungente
não
há
de
ser
inutilmente.”
Percebe-se
que
há
pessoas
de
diversas
regiões,
se
destaca
da
cena
um
tom
de
vida
na
cidade
do
interior.
Há
muitos
ali,
que
se
configuram
como
família.
Constroem
no
espaço
urbano
casas
imaginárias,
ao
relento,
mas
não
deixam
de
se
organizar.
As
divisórias
entre
a
cozinha,
o
banheiro
e
a
sala
são
invisíveis,
mas
existe
espaço
designado
para
cada
cômodo.
Somos
convidados
a
entrar,
as
visitas
são
diárias.
Já
nos
viadutos,
ficam
intocados
nas
partes
superiores,
já
que
o
chão
foi
composto
por
pedras
pontiagudas
pelas
autoridades.
“Era
uma
casa
muito
engraçada,
colocaram
pedras
e
não
nos
disseram
mais
nada”,
pintam
nos
muros
como
forma
de
protesto.
“Que
sufoco!
Louco!
O
bêbado
com
chapéu-coco.
Fazia
irreverências
mil
prá
noite
do
Brasil.
Meu
Brasil!...”
Dançando
na
corda
bamba
correm
o
risco
de
se
machucar.
O
nosso
papel
fazer
algum
anteparo
frente
à
morte,
levar
vida,
presença,
constituir
um
outro
e
poder
construir
novidades
nos
caminhos.
“A
esperança
equilibrista,
sabe
que
o
show
de
todo
artista,
tem
que
continuar...”
Para
além
das
cenas:
“eu
prefiro
ser
essa
metamorfose
ambulante”
Na
disposição
de
servir
de
ponte,
de
construir
caminhos
juntos,
os usuários que encontramos chegam
aos
dispositivos
da
Rede.
Começam
a
ver
a
cidade
de
outros
ângulos
e
constituir
algo
novo
no
percurso.
Se
faz
possível
interromper
o
curto-circuito
constante
do
uso
da
droga
e
lançar
mão
de
outros
recursos
para
tratar
o
desconhecimento
“sobre
o
que
é
o
amor,
sobre
o
que
eu
nem
sei
quem
sou”.
Neste
cenário,
a
demanda
é
por
ampliação
de
lugares
que
priorizem
a
cidadania,
a
liberdade,
o
acolhimento
e
o
laço
com
o
usuário
de
drogas.
Já
que
aprendemos
cotidianamente,
que
a
cidadania
é
a
melhor
saída
para
cuidar
das
pessoas.
O
respeito
às
diferenças,
o
olhar
despido
de
preconceito,
a
delicadeza
da
escuta,
se
tornam
prioridade
nos
encontros.
Somos
a
resistência
frente
aos
que
preferem
“ter
aquela
velha
opinião
formada
sobre
tudo”.
Reafirmaremos
quantas
vezes
for
preciso
sobre
os
desastres
causados
pela
exclusão.
Dizemos
NÃO
às
práticas
caducas,
em
que
se
acredita
que
trancar
é
tratar.
Inventamos
outro
modo
de
cuidar
dos
que
fazem
uso
de
drogas
e
preferimos
ser
uma
“metamorfose
ambulante”
acompanhando
o
movimento
dos
sujeitos
na
cidade,
esforço
para
construir
uma
prática
cidadã!
1
Texto
apresentado
no
Seminário
da
Frente
Mineira
Sobre
Drogas
e
Direitos
Humanos
– FMDDH-
“Drogas
e
cidades:
pensamentos
para
uma
prática
cidadã”.
Realizado
em
Belo
Horizonte
– 14,15
e
16
de
março
de
2013.
3
Texto
elaborado
a
partir
da
experiência
das
4
equipes
de
Consultório
de
Rua
de
BH,
com
colaboração
dos
demais
profissionais
das
equipes.
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