quarta-feira, 3 de abril de 2013

Drogas: para além do uso, outras cenas...


 

Drogas: para além do uso, outras cenas...1



Bárbara Coelho Ferreira2 3



Quem anda no trilho é trem de ferro, sou

água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.(Manoel de Barros)

Escolho iniciar esta conversa, citando o poeta que ensina sobre um bem precioso na vida: a liberdade! Vejo nela a possibilidade de traçar caminhos, ser diferente, tropeçar, recomeçar, encontrar pedras, perdas, alguns ganhos e ser responsável. Condição que traz a possibilidade do encontro, mesmo que isso não seja garantia de felicidade, que pode haver no encontro a marca do mal estar, e cabe a cada um escolher o modo de tratar. O poeta escreve, faz escolha pela sublimação. Alguns com este esforço de poesia são capazes de voar com os pés no chão e outros andam pelo mundo...



Quero compartilhar algo de nossas andanças, que nosso Consultório se propõe a ser de Rua e ir até onde o povo está, como faz o artista! Ousadia que nos faz acompanhar aqueles que tomam o espaço da rua para fazer uso de drogas. A oferta de cuidados e a articulação de Rede é o que marca o trabalho. A partir do viés da Redução de Danos e Reforma Psiquiátrica, inaugura-se a responsabilidade do poder público nas chamadascenas de usode drogas. Atualmente, 4 equipes atuam em pontos diferentes da cidade de Belo Horizonte, fazendo surgir uma oferta que vai na contramão das políticas higienistas que constantemente param caminhões para recolher, levar, e mesmo limpar a cidade desses que escapam à norma social e apontam para um gozo excessivo.



Para dar conta dessa tarefa de transmitir algo da peculiaridade do trabalho de cada equipe, vou seguir o percurso do rio, desde a nascente até outros cursos que ele vem ganhando. Este rio segue o que está fora do contorno da cidade, seus becos, suas bocas!



Cena 1Equipe Noroeste

Meu caminho é de pedras como posso sonhar?



Sonhar a brisa, o vento, um alento, intervalos, laços e quiçá travessia. É assim que chegamos à chamada Crackolândia da cidade. Lugar intoxicado pelo discurso midiático e pelos efeitos dessa embriaguez no imaginário da sociedade. Perigosos, noiados, zumbis,pedretes:Joga pedra na Geni, Joga pedra na Geni!”

Das surpresas no caminho, encontramos uma paisagem local formada por imensas pedreiras, que nomeia a região Pedreira Prado Lopes. Lugar que foi marcado pelo trabalho, quando Belo Horizonte se tornou Capital de Minas Gerais. Hoje, pelas ruas as águas que correm são as de esgoto a céu aberto, levando os lixos espalhados pelas esquinas. Da paisagem local ao que surge com a exigência de consumo do nosso tempo, outras pedras: o crack.

O uso de crack na região é algo que se faz estrangeiro para os moradores desta comunidade:esse pessoal não é daqui! Pela escolha decidida de se aproximar do estranho, do estrangeiro seguimos a caminhada. Chegamos de mansinho,na humildade, como apontam os adolescentes moradores dali.

Nos becos, ruas, maloquinhas, terrenos baldios, fizemos das estratégias de Redução de Danos um jeito de dar boas-vindas. E somos retribuídos sendo autorizados a chegar.Normal, a van que sobe!” anunciam as nossas boas-vindas.

Chegamos para introduzir algo novo, um outro olhar! Logo de início isso nos é apontado:O jeito que vocês olham pra gente é diferente. A posição de acolhimento e vínculo propicia o laço com cada um!

No momento das abordagens é possível deixar de lado o mutismo dos cachimbos eparar de fumar pra conversar, regra instituída pelos próprios usuários. Aos poucos a parada da van se torna um convite ao pensar:eu vejo vocês virando a esquina e me pergunto porque estou aqui de novo?

Começam aparecer histórias e as verdadeiras pedras do caminho: a vulnerabilidade, desigualdade social, exclusão, preconceito e repressão. Drogas com alto poder de letalidade.Joga pedra na Geni?

Aprende-se que com um outro olhar é possível traçar novos caminhos juntos rumo à cidadania.


Cena 2Equipe Centro-Sul/Leste

de saída minha estrada entortou.



Inda garotos não vão pra escola. Nem ladrões ou bons de bola. Não anjos safados ou querubins que predestinem o futuro, mas marcas de violação de direitos e abandono.

Tomam as ruas um grupo demeninos, que rouba a cena na região centro-sul da cidade. Fazemcorresetem que estar ligados, pra não ser vacilão e responder à correria do mundão. Circulam entre regiões nobres, pelas traseiras de ônibus ou parados nos sinais. Mangueando algo da vida, eles pedem sem cessar.

Na Savassi, Região Hospitalar, Avenida dos Andradas, pontos de conexões da cidade, ali estão, demonstrando de forma exorbitante algo da desinserção. Provocam motins, andam em bando e entre umas e outras fazem uso de thínner para tratar a fome e a falta de proteção. Anestesia para as dores da vida.

Na onda do imaginário social, recebem nomes do pior: pivetes, trombadinhas, perigosos. São atropelados por intervenções repressoras e pelas armadilhas da vida sem proteção. O pior é o que se faz em nome da proteção.

O laço com o Consultório de Rua, propicia momentos de delicadeza e alguma ancoragem. Dacorreriaàs corridas de saco. Introduz-se algo do lúdico para chegar mais perto. Assim, se faz possível deixar de lado os paninhos e garrafas de cola e tomar posse de pincéis, tintas e cores. Vão ao cinemas e parques. Pedem menos repressão e mais arte. Seguimos na contramão da estrada torta.

E no movimento segue-se rumo à região de suas moradias, numa tentativa de desatar nós e retomar algum fio que ainda resta de laço, seja com as famílias, comunidade ou Estado. Alguma inserção possível, um abrigo ou momento de descanso. Tentativa de fazer morada no campo do outro.Deixa ele viver, é o que liga!



Cena 3Equipe Oeste

Todos os dias é um vai-e-vem. A vida se repete na estação



Dos que chegaram pra ficar aos que vieram olhar. Estão a sorrir e a chorar. Inicia-se a vida a partir da linha do trem. Constroem suascasinhas, diminutivo atribuído pela população local. Dos encontros às despedidas, tomamos esta cena pelo modo que percebemos à marginalização neste lugar.

uma grande circulação de pessoas, que transitam por ali. Entre butecos e bocas. De um lado ao outro, atravessamos a linha do trem e a Via Expressa na região Oeste da cidade. Fazemos a opção por transitar entre as pessoas ,estar ao lado, acompanhar e nos interessar em saber sobre elas.Bom dia.Como vai você?São pausas introduzidas por palavras que rompem com a repetição gerada pela exclusão social nesta estação.

A desatenção é anunciada pelas políticas que não tinham este território como área de abrangência. Estão apartados, à margem, fora da linha!A plataforma dessa estação. É a vida desse meu lugar.

A droga não é a única mercadoria, também a exploração sexual de mulheres e travestis. Às vezes aparece a relação de troca sexo por droga. A prostituição compõe a cena. O que pode aumentar a situação de vulnerabilidade. O avanço foi o acesso aos direitos e a visibilidade dessas pessoas na cena da cidadania. O trem que chega não é o mesmo trem da partida.

Circulando pela região, encontramos nos dias cinzas embaixo de viadutos, uma proposta dearrumar a casa. Pedido vindo de quem muito tempo se encontra por ali. Pintam flores, frases, desabafam, encontram essa possibilidade numa oficina de grafite. A vida que às vezes se repete, repete para que o novo possa surgir!









Cena 4Equipe Norte

Dança na corda bamba de sombrinha



Bêbados ou equilibristas na corda bamba do que é viver. Cai, recai, levanta! Um bar chama atenção pela música alta e pela ausência de porta, o funcionamento é 24 horas. Circulam muitas pessoas e a tarde vai caindo feito viaduto. Ali ao lado, na praça que consagra os Trabalhadores e nos viadutos locais da Região Norte da cidade.

A convivência intoxicada pelo álcool um tom de socialização, e muitas vezes, escancara a solidão de cada um. Paradoxo!Mas sei, que uma dor assim pungente não de ser inutilmente.

Percebe-se que pessoas de diversas regiões, se destaca da cena um tom de vida na cidade do interior. muitos ali, que se configuram como família. Constroem no espaço urbano casas imaginárias, ao relento, mas não deixam de se organizar. As divisórias entre a cozinha, o banheiro e a sala são invisíveis, mas existe espaço designado para cada cômodo. Somos convidados a entrar, as visitas são diárias.

nos viadutos, ficam intocados nas partes superiores, que o chão foi composto por pedras pontiagudas pelas autoridades.Era uma casa muito engraçada, colocaram pedras e não nos disseram mais nada, pintam nos muros como forma de protesto.Que sufoco! Louco! O bêbado com chapéu-coco. Fazia irreverências mil prá noite do Brasil. Meu Brasil!...

Dançando na corda bamba correm o risco de se machucar. O nosso papel fazer algum anteparo frente à morte, levar vida, presença, constituir um outro e poder construir novidades nos caminhos.A esperança equilibrista, sabe que o show de todo artista, tem que continuar...



Para além das cenas:eu prefiro ser essa metamorfose ambulante



Na disposição de servir de ponte, de construir caminhos juntos, os usuários que encontramos chegam aos dispositivos da Rede. Começam a ver a cidade de outros ângulos e constituir algo novo no percurso. Se faz possível interromper o curto-circuito constante do uso da droga e lançar mão de outros recursos para tratar o desconhecimentosobre o que é o amor, sobre o que eu nem sei quem sou”.



Neste cenário, a demanda é por ampliação de lugares que priorizem a cidadania, a liberdade, o acolhimento e o laço com o usuário de drogas. que aprendemos cotidianamente, que a cidadania é a melhor saída para cuidar das pessoas. O respeito às diferenças, o olhar despido de preconceito, a delicadeza da escuta, se tornam prioridade nos encontros.



Somos a resistência frente aos que preferemter aquela velha opinião formada sobre tudo. Reafirmaremos quantas vezes for preciso sobre os desastres causados pela exclusão. Dizemos NÃO às práticas caducas, em que se acredita que trancar é tratar. Inventamos outro modo de cuidar dos que fazem uso de drogas e preferimos ser umametamorfose ambulanteacompanhando o movimento dos sujeitos na cidade, esforço para construir uma prática cidadã!

1 Texto apresentado no Seminário da Frente Mineira Sobre Drogas e Direitos HumanosFMDDH-Drogas e cidades: pensamentos para uma prática cidadã. Realizado em Belo Horizonte14,15 e 16 de março de 2013.

2 Psicóloga do Consultório de RuaSecretaria Municipal de Saúde PBH.

3 Texto elaborado a partir da experiência das 4 equipes de Consultório de Rua de BH, com colaboração dos demais profissionais das equipes.

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